quinta-feira, agosto 31, 2006

Dança inaudível

Existe uma dança ritual dentro de Celeste. Suas células a conhecem, seus músculos a reconhecem, mas seu corpo jamais a executou.
No entanto, quando vem a noite com seu cheiro de atavismo, ela entra pela janela. E Celeste dança pela casa, embora ninguém perceba. Escondida sob os gestos de sempre, sob o colo que nina o filho, sob as mãos que trancam as portas, sob os quadris que se entregam à poltrona, sob os pés que acarinham o lençol, sob o ventre que se entrega ao colchão, baila invisível a noite toda.
Até que chegue o sol e suas tarefas.
Como as bruxas, Celeste só dança para a Lua.


Rosa Amanda Strausz
Encontrei esta foto na Internet e achei linda. Infelizmente, não trazia o crédito do fotógrafo, por isso não posso partilhá-lo com vocês. Caso alguém saiba seu nome, por favor, me avise. Se tiver o email dele, melhor ainda ...

segunda-feira, agosto 28, 2006

O anão roubado

Em uma tarde, foram ao circo. O pai cobria o filho de presentes: balões, o melhor lugar na arquibancada, a moedinha prateada. Foi quando o garoto, na saída, viu o anão do circo, distraidamente varrendo perto das jaulas. O guri disse: eu quero. O pai olha em volta, dá sinal (ou finge) que não entende. Ah, descobre a brincadeira, quer o anão? Não, o anão não. É propriedade do circo, entende?
Mas o pimpolho, o choro, o escândalo. O pai não vê outra saída. Além do mais, roubar o anão é mais fácil do que uma girafa.
O homem e seu filho rondam o anão. Olham pros lados, o pai mostra o modo certo de se cercar um anão, o homenzinho nota a caçada, começa a berrar, quase não vê saída: mínimo, tenta entrar na jaula do leão. É pego pelo pé, se debate. Me ajuda, Júnior, aqui, assim, e o pai, prestimoso, enfia o anão por dentro da camisa. O anão vê que de uma lona maior de circo, parou em outra. Pano amargo, esta vida.
Em casa, dias de empolgação. O anão dá cambalhotas, faz palhaçada, sobe pelas paredes. Eles riem, pai, mãe, filho. Depois trancam o anão no quarto dos fundos. No fim do dia, o anão maldiz a vida num lamento diminuto, enquanto pela noite voejam os sons do ferro e do pano, dos caminhões que recolhem o circo.

André Ricardo Aguiar

quinta-feira, agosto 24, 2006

O silêncio do vulcão


Para Ryta de Cassia
in memorian




A gente olha as montanhas e admira sua imobilidade. Imagina estar diante de um monumento natural à paz. A imensidão da pedra fria faz esquecer que a montanha foi expelida da terra com a violência de mil tormentas. Foi o fogo, o caos da terra rompida que a fez tão grande. Muitas eras foram necessárias até que a pedra deixase de fumegar. Só então pulsou serena.
Hoje, Luzia me diz “Quero que me olhem e vejam uma montanha”.
Se tivessem matado um filho meu, eu também ia querer virar pedra. Olhar nos olhos de Luzia é mergulhar numa dor tão profunda, num susto de tamanha extensão, numa brutalidade tão pura que não há carne nem osso que agüente.
Ela é pedra porque ficou cristalizada no limiar do horror. É pedra porque diante das grandes derrotas só resta a impassibilidade: uma forma mais branda de morte.
As montanhas surgiram assim: expelidas da terra com a força de mil tormentas. Foi o fogo, o caos da terra rompida que as fez tão grandes.
Luzia hoje é muito maior do que era antes.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, agosto 21, 2006

Acidentes geográficos

Seria muito mais fácil se ele descrevesse ou inundasse uma carta com minúcias do verde: folhas, troncos, árvores cansadas que se tornam bancos. E pedras amolando o tempo. Em vez disso, preparou-lhe uma surpresa perigosa. Vendou-lhe os olhos e num seqüestro consentido, levou para um lugar ermo e urbano. Ele mexeu nos bolsos e às escondidas, tirou algo, como a hesitar o uso. Logo depois, um barulho, um borbulhar de coisa criada às pressas.
Quando lhe tirou a venda, eis o bosque. Caminharam sobre lama e folhas, pedras e galhos. Ela viu que o moço guardava um vidrinho. Pediu para ver e insistiu várias vezes. Ou que ele explicasse como um bosque nascia do nada, numa região sabidamente industrial e devastada. Está bem, ele disse, olha aqui: e do vidrinho leu o rótulo: bosque em cápsulas. Bastava encontrar qualquer poça de lama e ploft!, uma explosão densa e vegetal, e estava criado o pulmão verde em questão de segundos.
Para provar, resolveu mostrar-lhe por fora o limite, suas fronteiras perto de uma fábrica abandonada de laticínios. Apenas, caminhando um pouco mais, ele estranhou aquele barranco de terminações imprevistas e abruptas. Quando afastou uma ramagem violenta, escorregou à beira de um precipício, o gesto ofegante das mãos nas raízes da terra, ela segurando-o pelo braço, enquanto olhavam assustados para um ponto qualquer. Ali, preso num arbusto próximo, não era o resto de uma embalagem abandonada por incautos, ainda a derramar seu pó de abismos?

Foto de Noberto Moreira

André Ricardo Aguiar

quinta-feira, agosto 17, 2006

Poema voa?


O rapaz entrou na biblioteca e devolveu o livro. Deixou esquecido entre as páginas um poema escrito por ele, na esperança de que alguém gostasse.
Não funcionou. A menina entediada pegou o livro emprestado, encontrou a folha, achou o poema uma porcaria, fez um avião de papel e botou na pista de terra para ver se voava.
Não voou. Mas o pescador viu a folha caída, dobrou em forma de barco e botou na poça dágua. Queria ver se navegava.
Não navegou. Mas o jogador de futebol passou por ali, gostou do papel molhado, amassou, e ele virou bola. Queria ver se rolava.
Não rolou. A chuva aumentou, o papel se dissolveu e ficou só o poema. Mas a formiga achou que as palavras eram de açúcar e as levou para dentro do formigueiro. Queria agradar a rainha.
Não agradou. Mas o tamanduá meteu a língua no formigueiro e comeu o poema. Teve indigestão e foi ao médico. O doutor explicou que literatura é péssimo para o estômago e lhe deu um purgante. Queria ver se o paciente obedecia.
Não obedeceu. O tamanduá leu a bula e decidiu não tomar o remédio.
Preferiu adoecer de poesia.

Rosa Amanda Strausz
Este conto está sendo ilustrado pela imagem de uma placa de cerâmica da artista plástica Edineusa Bezerril, que se encontra em www.docedeletra.com.br/edineusa

segunda-feira, agosto 14, 2006

Composição infantil

Eu capturava réstias de sol com vários espelhinhos; consegui guardar uma delas, sem o consentimento da lua, altas horas da noite. Em compensação, na manhã seguinte, vi uma réstia de sombra, de sol apagado.

Eu inventava doenças imaginárias. Uma vez peguei febre pelo cabelo. Causava arrepio e palavras que saíam de mim que ninguém entendia. Na verdade, causavam Intendimento, com i mesmo. De outra vez, fui buscar num quarto lotado de fotos antigas uma doença chamada Mnemonia. Lembrava de coisas da minha vida que não tiveram tempo de acontecer, mas que aconteceriam se eu tivesse mais tempo. Com doze anos, lembrei o suficiente para criar a história de três cidades, incluindo moradores, genealogia, etc. Mas a doença que mais me derrubou foi susto familiaris. Eu me contagiava de tios, primas, avós, tudo dos séculos de trás e em cada tosse ou espirro me nasciam mais parentescos.

As senhoras, ao fim da tarde, varriam folhas e formigueiros. Os moços varriam conversas e causos. O rio varria a água. A tarde varria o sol. Só eu vivia nos invernos da casa, contando quantas formigas, quantas gotas d’água fugiam para o indefinido. Minhas ocupações do ócio levavam horas. Pensava em sofás que sofriam de asma, almas do outro mundo dentro da cisterna, punhos de redes que esmurravam paredes.

Penso que adoeci de vida, quando nasci.*

André Ricardo Aguiar

* Paráfrase de um verso de Marin Sorescu.

quinta-feira, agosto 10, 2006

Pipoca

Na rua onde eu morava, tinha um jequitibá e um pé de abóbora, cinco casas caiadas e uma carrocinha de pipoca. Não me pergunte o por quê, eu não saberia responder, mas todos os namorados se encontravam ali – entre o jequitibá e o pé de abóbora. E eram muitos. Mais do que o número absoluto dos habitantes da cidade, mais do que as formigas, mais do que as pipocas.
Um dia, vi um rapaz e uma moça, de pé, parados, olhos nos olhos.
Muito sério, o nariz quase encostado no da moça, o rapaz dizia:
- A reta é o caminho mais curto entre dois pontos.
- Não gosto de retas, prefiro fios -, sorriu a moça puxando uma mexa do próprio cabelo e cobrindo o rosto com ela.
- Não gosto de fios – resmungou o rapaz. – Prefiro riscos.
E escreveu no chão de terra o nome da moça.
- Não gosto de riscos, prefiro linhas - suspirou a moça acariciando a palma da própria mão com a ponta do dedo.
Enquanto os dois discutiam, o jequitibá e o pé de abóbora continuavam sua caminhada silenciosa e lenta. Um, reto, na direção do céu; outro, sinuoso, em busca do mundo.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, agosto 07, 2006

As aparências não enganam

Com muita dificuldade aquele velho curvado da aldeia fabrica um espelho para não refletir. O material é indócil, ele diz. Guardar segredo. No fundo do galpão, com vigor artesanal, mais um espelho fica pronto. Primeiro aquela superfície não entende e vai refletindo tudo: objetos, passados das pessoas, almas. Com o passar do dia, vai depurando e recusando certas reflexões. É o estágio, garante o artesão, da desilusão polida. Então, com a velhice antecipada do espelho, ele embala a imensa placa com moldura e despacha para o comprador.

Bem posicionado em casa antiga, começa a funcionar. Não reflete nada. Outro é o problema: qualquer coisa que o toca, vai para o outro lado. Uma mosca. Uma camareira curiosa. Uma réstia de sol e o vento arisco.

Então chega o cansaço, o enfado de ter um produto defeituoso. Chamam o velho curvado. Ele vai de praxe, e explica: este não é o lado certo do espelho – e com um puxão vigoroso na moldura, o espelho permanece, mas o mundo já é o outro.

Field-glass, tela de René Magritte
André Ricardo Aguiar

quinta-feira, agosto 03, 2006

Corte em camadas

Então, elas foram morrendo. Uma a uma. Nem tão rápido que parecesse desgraça, nem tão lentamente que passasse despercebido.
Uma a uma.

Avós, tias, mães, madrinhas. Antes, havia sobre o tempo uma camada protetora. As moças observavam a feminilidade lenta da velhice com uma espécie de condescendência. Tão distantes elas, as razoáveis, com seus cabelos limpos e sua história sob controle.
Aos poucos, mas tão depressa, a camada foi se gastando. Até sumir.
De repente, a irmã caçula, grávida pela terceira vez aos quarenta anos, olhou para a primogênita e disse: depois que mamãe morrer, você será a mulher mais velha da família.
Era um pedido. A irmã seria capaz de protegê-la, de transformar-se também em uma camada de tempo, uma imensa asa tenra sob a qual abrigaria filhas, irmãs e sobrinhas? A mais velha riu, abraçou a caçula e recomendou henna para cobrir os cabelos brancos durante a gravidez, é menos tóxico.
Nos dela, vai tinta mesmo. Vermelho intenso. As camadas mudam, você sabe.
Algumas podem luzir.
Mas outras ardem.

Rosa Amanda Strausz

O trabalho que ilustra este conto é uma tela da artista plástica portuguesa Adriana de Barros, que se encontra na galeria virtual Cloud King: http://cloudking.com/artists/adriana-de-barros/red-hair.php