quarta-feira, novembro 29, 2006

Yes

O Y era tão nítido que quase podia vê-lo. Como se fosse uma imagem de ressonância magnética do crânio, mas sem imagem nenhuma, só a dor. Um repuxo em três pontos: um em cada têmpora e o último no alto da cabeça. Cordas de uma guitarra tensa que vibrava sem melodia.
Antes mesmo de abrir os olhos, pela manhã, já podia senti-lo, embora fosse impossível determinar sua causa. É só uma dor de cabeça, explicava a quem perguntava o motivo dos óculos escuros.
Um dia, um daqueles dias de Y em aço cravado nos miolos, pensamentos imprestáveis, uma irritação incontida, o médico do serviço de saúde da empresa bocejando entediado:
- Não posso lhe dar mais um dia de licença. Já é o oitavo deste mês. Dor de cabeça, agora, só daqui a uma semana, entendeu?
Fez que sym com a cabeça. Sym com Y.
E retornou à sua mesa.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, novembro 20, 2006

Uma semana toda de domingos

A primeira sensação que tive ao sair da prisão por um túnel lamacento foi a da abertura de um útero. A segunda, de desespero, porque o túnel dava para um fundo de poço. Um pouco mais estreito que minha ex-cela. Pelo que sei, fica em algo parecido a um matagal e de sua boca escancarada de céu vejo uma ramagem turva de árvores e uma vírgula de nuvem, além de um fio de alta tensão. E só.
Alimento-me das frutas podres que caem ocasionalmente por obra da ironia e mato minha sede com alguma chuva que sempre se avizinha. Tão só, não tenho ganas de voltar pelo túnel e morrer contrabandeando pequenas liberdades. De vez em quando, quando tenho forças, escalo o poço, mas invariavelmente caio com estrépito no lençol de folhas podres, urina e terra de ninguém. Assim, passo a maior parte do tempo dormindo com minhas feridas, esperando, respectivamente, que morra algo de mim nessa semana feita de domingos, esticada num calendário incerto em que minha existência fica mais ou menos rente à figura de Jó, sem nada, mas um nada mais patético, porque aqui neste poço nem Deus se dispôs a baixar e amaldiçoar a minha vida.
Ouço vez ou outra, barulho de terra caindo do túnel, onde mais uma vez apagam o registro. Ao fim do interminável domingo alcanço a borda do poço, já sem forças, e vejo, ainda com o fôlego pendurado, o mesmo pátio da cadeia, a sombra da nuvem que cobre a guarita do guarda, o fio de alta tensão que alimenta o holofote e a árvore doente e cativa. Não termino o pensamento, pois a bota do guarda me empurra de volta para o fundo do poço, e em vez de fruto, cai uma pá e um grunhido que diz cave de volta o seu túnel e comece de novo.

André Ricardo Aguiar

quinta-feira, novembro 16, 2006

O brasão


- Um brasão, Heraldo?
Por que não? Já tinham tudo o que queriam. Só lhes faltava um passado.
- Como se faz um brasão?
Não é difícil. Nós mesmos nos outorgamos a honraria. O que nossa família fez que merecesse destaque?
- Teu pai matou dois homens.
- Ponha dois revólveres no desenho. Foi a bala.
- Quando você era pequeno, matou uma cobra a paulada.
- Ponha a cobra.
- Lembra quando o governador veio almoçar lá em casa? Eu assei um leitão. Posso botar o leitão?
- Põe, claro.
- E quando eu perdoei Zé Vicente?
Heraldo titubeou. A partida do caçula ainda lhe doía até os ossos. O rapaz batendo a porta de casa, gritando que não queria dinheiro sujo. As poucas notícias dando conta de Zé Vicente transformado em alfabetizador de adultos. Solteiro, divindo casa com um amigo. Pobre, afeminado, orgulhoso.
- Põe um punhal.
Severina Antônia Maria das Graças Assis da Silva não discutiu. Desenhou o punhal. À noite, começou a bordar. Os revólveres, a cobra, o leitão, o punhal. Com tudo pronto, pegou a linha preta e fez uma formiga, bem miúda, em cima do punhal.
Depois, bordou a agulha. E a linha. E ela própria bordando um brasão no centro do qual havia uma formiguinha. Era capaz de passar a noite inteira assim, mas lembrou do açucareiro destampado e correu para a cozinha.
Não se pode descuidar com as formigas.
Elas não dormem jamais.

Rosa Amanda Strausz

Ilustração: Moebius Strip II - M.C.Escher

segunda-feira, novembro 06, 2006

Chuvas

São tão belas as chuvas que descobri como formá-las. As nuvens são como essas roupas consentidas pelos fantasmas que se desassombram da gente. Acenam do varal. Ninguém pode contar-lhes as mais variadas viagens da forma. Tudo por culpa do vento, primo das chuvas. Algumas pressentidas como o melhor segredo depois do sermão do avô ou antes do fim da meninice.
Sabe-se lá onde nascem seus sítios de água. Cada gota segue uma direção, como um pensamento que se entrega à dispersão geral das coisas: pensamento, gota, lembrança, outra gota, respingos que parecem se dirigir para a eternidade. A chuva, as chuvas. Todo plural regando a palavra. As águas, como são conhecidas, no piquenique líquido de repiques e remorsos, selva de minúsculos códigos morses que, entre a sintaxe da ventaria e a melancólica posição de buda de certos moluscos, fazem dos frades de pedra pontos de encontro do musgo.
Os relógios, em dias de chuva, são mais cabisbaixos, seguem rentes ao chão das horas; as cacimbas sofrem de bulício, as cisternas engravidam. O mato cresce, maduro, ciente de ser a onda verde, o mar triste dos bovinos.
Hoje, se me perguntam sobre chuvas, mesmo entretecido de uma goteira de prédio cinzento na cidade grande, digo que sou formado em chuvas do interior. Das antigas.

André Ricardo Aguiar

quinta-feira, novembro 02, 2006

Almoço de domingo

A luz da manhã invade o quarto feito um estampido. Cheiro de fruta quente, galinhas mortas, verduras urgentes, peixes que lentamente perdem seu frescor. Caixotes jogados do alto dos caminhões, gritos e a ladainha dos feirantes compõem uma sinfonia nervosa, fundo musical adequado para completar o cenário: é dia de festa.

Clara sai à rua sem nem mesmo tomar café. Cai da cama diretamente para a feira livre. Precisa fazer compras para o almoço. É dia de festa, os sentidos pedem alimento especial.

Percorre as barracas meio nervosamente. Tudo igual: laranja, quiabo, alho, louro, as flores de sempre. Até que enxerga uma barraquinha nova, miúda, cuja estrutura quase não se vê de tão abarrotada de mercadorias. Um pouco de tudo. Berinjelas minúsculas, alfavaca, peixes de cintilação multicolorida, cardamomo, garrafas azuis e verdes, palha de milho, fitas amarelas, louça de brechó, perdizes vivas, favas de baunilha, fumo de rolo, chá de tangerina.

Olha tudo. Embrulha os peixes nas fitas, banha as perdizes com as garrafadas, enche xicrinhas de borda dourada com feijões verdes. Sai dali com a sacola pesada.

Hoje é dia de servir risadas aos convidados.

Rosa Amanda Strausz