quinta-feira, agosto 03, 2006

Corte em camadas

Então, elas foram morrendo. Uma a uma. Nem tão rápido que parecesse desgraça, nem tão lentamente que passasse despercebido.
Uma a uma.

Avós, tias, mães, madrinhas. Antes, havia sobre o tempo uma camada protetora. As moças observavam a feminilidade lenta da velhice com uma espécie de condescendência. Tão distantes elas, as razoáveis, com seus cabelos limpos e sua história sob controle.
Aos poucos, mas tão depressa, a camada foi se gastando. Até sumir.
De repente, a irmã caçula, grávida pela terceira vez aos quarenta anos, olhou para a primogênita e disse: depois que mamãe morrer, você será a mulher mais velha da família.
Era um pedido. A irmã seria capaz de protegê-la, de transformar-se também em uma camada de tempo, uma imensa asa tenra sob a qual abrigaria filhas, irmãs e sobrinhas? A mais velha riu, abraçou a caçula e recomendou henna para cobrir os cabelos brancos durante a gravidez, é menos tóxico.
Nos dela, vai tinta mesmo. Vermelho intenso. As camadas mudam, você sabe.
Algumas podem luzir.
Mas outras ardem.

Rosa Amanda Strausz

O trabalho que ilustra este conto é uma tela da artista plástica portuguesa Adriana de Barros, que se encontra na galeria virtual Cloud King: http://cloudking.com/artists/adriana-de-barros/red-hair.php

6 comentários:

Anônimo disse...

Será possível existir uma literatura neblinante, uma literatura grávida de delicadas gravuráceas (sei, sei, o termo não existe, mas gostei dele, e pronto!), minha cara comadre? Claro que sim: seus contos estão aí, ou aqui, tanto faz, para mostrarem o seu real significado. Um beijo.

Anônimo disse...

Este conto também está em camadas. Em uma, é um estudo sobre o tempo. Em outra, sobre as relações familiares. Por último, sobre nossa mortalidade. Pela capacidade de condensação, diz mais do que aparenta. Seria bem-vindo em três antologias dos respectivos temas.
Parabéns, Rosa!

Anônimo disse...

Esses comentários sobre os os seus textos me atormentam. Tem tanto que eu poderia dizer, sobre a forma, o tema, sua leveza feminina, mas tudo me parece exagera e desnecessariamente complexo quando o que quero dizer é que o texto é maravilhoso e que compensa muito as constantes visitas a este blog.

Anônimo disse...

Essa irmã mais velha parece eu, que sou a irmã mais velha por aqui. E que já ouvi coisa semelhante.;)
Belo como sempre.
Um beijo.

Anônimo disse...

Rosa, este conto fica ainda mais bonito porque sei exatamente a que você se refere nele. Conseguir transformar a dor em literatura, com uma risada ecoando ao fundo, como se nos lembrasse que nada, nem a dor, pode ser levada tão a sério assim, é a sua cara! beijos emocionados. Maria Clara.

Anônimo disse...

Estou pintando meus cabelos de vermelho vivo... pelo menos por dentro.Um beijo