quinta-feira, setembro 28, 2006

Tempo III

Ganhou três gravuras chinesas com fundo vermelho. Uma borboleta ladeada por dois morcegos; um peixe e um dragão. Emoldurou o presente em laca e pendurou na sala, adivinhando significados místicos nos quadros e nas intenções de quem os deu.
Eram três ilustrações para rótulos de caixas de fósforo, descobriu anos depois. E ficou ainda mais encantada com a irrupção daquela beleza repentina. Desde esse dia, quando lhe perguntam o que querem dizer as gravuras, sorri misteriosa. De que adiantaria explicar a morte dos nossos pequenos deuses?

*Conto extraído do livro Mínimo Múltiplo Comum.

Rosa Amanda Strauz

segunda-feira, setembro 25, 2006

Soldadinho de chumbo

Era um soldadinho de chumbo e estava apaixonado pela bailarina da caixinha de música. Um chuvoso dia (folga dos brinquedos) propôs um passeio pelo armário. Já ia alta a lua recortada de alumínio. Sentaram-se à sombra de um grande joão-teimoso. E embora fosse de chumbo, o soldadinho derretia-se facilmente em afagos. Contava aventuras de guerra, dizia poemas épicos resumidos, marchava miudinho. A bailarina achando tudo aquilo divertido apenas.
Um dia, convocado, o bonequinho foi para a guerra. Longe, longe - no outro lado do quarto. A vida era dura, os soldados dormiam em caixas de fósforos abandonadas. O soldadinho escrevia cartas de amor e mandava por um camundongo. Nenhuma foi respondida. Até que a guerra se finda de uma vez e eis que o soldadinho de chumbo tem menos chumbo - perdera uma perna - e mais coração.
Mas grande desilusão! Manca que manca, sofre mais do que todas as batalhas perdidas. Encontra sua amada bailarinha nos braços de outro. Por sinal, um sujeito metido à pelúcia. Fora traído por um ursinho.

André Ricardo Aguiar

quinta-feira, setembro 21, 2006

O muro próprio

Denise comprou a casa. Perto demais da favela, mas sua. E tem quintal para os meninos. Falta só fazer o muro.
Ainda está arrumando a mudança quando vê o garoto, pouco maior do que os seus, com o revólver pendurado na cintura. Na frente da casa. Da casa sem o muro.

Chove forte. Ele tira a camisa e embrulha um pacote com ela. Fica com as costelas soltas no frio da tarde de julho. Tão magrinho, encolhido sob a chuva, sentado no chão molhado.

Faz o jantar e não agüenta. Chama o menino para comer um prato de feijão quente. Não posso sair daqui, tia. Então, ela faz o prato e leva para a rua. Ele conta que se chama Capeta e é olheiro do morro. Não pode arredar pé dali, tem que vigiar o caminho e disparar os fogos se a polícia aparecer ali embaixo, ali na curva, está vendo, tia? O problema é a chuva, que está molhando os fogos, guardados junto com o revólver dentro da camiseta. Tia, guarda pra mim?

Denise não pode, não quer encrenca, tem filho pequeno e um medo enorme. Entra em casa e vê quando, mais tarde, chega uma mulher envelhecida, muito provavelmente a mãe do Capeta. E pede tanto que ele vá para casa e ele só faz que não com a cabeça. Que idéia a da mãe, largar o ponto, não é homem disso.

Já está anoitecendo quando Denise fecha a janela e deixa o menino encolhido na chuva, a poucos metros da mãe, que também sentou no chão e vela a vigília do filho.

Amanhã vai procurar quem levante o muro. Mesmo sabendo que a tosse do Capeta vai atravessar todos os tijolos e se alojar no fundo do seu ouvido feito um tiro.

Originalmente publicado in Contos Fraternos, organizado por Lívia Garcia-Roza, Ed. Record

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, setembro 18, 2006

A.p.a.r.t.a.m.e.n.t.o

Acordou com a sensação incômoda de estar sobrando no apartamento. Os músculos doíam, respirava com dificuldade. Abriu lentamente os olhos, fez um gesto de levar a mão ao rosto, mas o braço nem sequer se mexeu: estava entalado no corredor, os dedos roçando a minúscula porta do seu quarto. Notou que o mal-estar era causado pela posição (de cócoras) e por se encontrar totalmente envolto pelas paredes, teto e chão da sala, as costas voltadas para a varanda do 8º andar.

Qualquer movimento mínimo, ir para frente, recuar, encolher os braços, uma tentativa que se anulava com barulho de móveis esmagados. O apartamento estava vazio? Onde se enfiara a mulher? E a governanta? Estariam do mesmo tamanho? Veio um arrepio de pânico na nuca. Lembrou apenas que tinha dormido no sofá – esmagado pelo dedão – com a tv de plasma ligada. Ali estava a tv, parecendo um desses brinquedos japoneses de ávidos miniaturistas. Quando tentou tocar com o dedo mindinho, um barulho de cream-craker: a tela em cacarecos.

Sentiu todas as suas funções vitais, a respiração pausada, o coração acelerado. Começava a duvidar se aquilo ali era um apartamento, se não era uma brincadeira de amigos, uma maquete tecnológica. Bastaria arquear os ombros e a tampa sairia dos encaixes e ele apareceria no meio de rostos conhecidos ou talvez num show de mágica, sabe-se lá. Mas constatou, assustado, que o teto ruíra um pouco acima de sua têmpora. E, susto, a outra mão enfiada até o fundo da cozinha, sentia a vibração inorgânica de uma máquina de lavar.

Alias, bastava respirar um pouco mais forte: o deslocamento de ar já derrubou alguns quadros na parede. Ele não teve dúvidas. Estava numa reprodução exata do seu apartamento, um brinquedo de última geração com capacidade para simular o mais extenso aparato de uma realidade. E já estava se cansando da brincadeira e prestes a tomar uma atitude mais drástica (suas costas doíam mais e mais) quando a porta da frente fez um barulho e a maçaneta começou a girar.

Agora sim, ele veria mais uma função, talvez movida à pilha.

Em vez disso, entrou um dedo: fez uma pequena inspeção às cegas, encontrou uma série de botões e foi desligando pouco a pouco, a luz matinal, a corrente de ar, as vibrações do apartamento, o sistema de travas, o alarme, além da dor nas costas, a sensação de claustrofobia e – último impulso do pânico – sua consciência.

Room_sea, Edward Hooper
André Ricardo Aguiar

quinta-feira, setembro 14, 2006

Recriação do mundo

Às segundas se vestia de palhaço e era o sucesso da cidade. Políticos, donas-de-casa, crianças, mendigos, xeretas e beatas se reuniam num circo improvisado sobre uma velha kombi e estouravam de rir.
Na terça, era o boticário. Arnica, boldo, camomila e cidreira. Desses ingredientes fazia uma infalível panacéia que aliviava os músculos doloridos pelo riso.
Mas a beberagem deixava as pessoas meio tristes, semi-apaziguadas. Então, na quarta, se enfiava na casaca de cetim e era o empresário que promovia o grande baile do meio da semana, onde a população sonolenta espantava o tédio dançando e pulando até acabar com os pés.
Na quinta, botava peruca e bigode, e chegava andando pela estrada de terra batida. Era o famoso calista que assistia o povo uma vez por semana. Trabalhava duro e recomendava um fim-de-semana moderado, cadeiras na varanda e conversa fiada.
Sexta das Paixões era o nome da birosca que só abria nesse dia. Mesinhas espalhadas pela rua, torresminho e cachaça. Ninguém resistia. Até as moças iam lambiscar a água que passarinho não bebe. E a farra corria pela madrugada, devidamente lavada pela branquinha do santo.
Por falar em santo, sábado era dia de abrir o terreiro e baixar o preto velho. Santo preto velho!... Curava ressacas físicas e morais cercado de velas e batuques selvagens.
Domingo, na impossibilidade de descansar, como um verdadeiro deus o faria, era o padre. Seus sermões eram solenes e terríveis. A voz grave, onde se mesclavam sotaques de idiomas vários, prometia o fogo dos infernos a quem se deixasse levar pelos agrados e enganos de Satanás que, como se sabe, tem mil faces e nenhuma piedade.

in Mínimo Múltiplo Comum, JO Editora, 1990


Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, setembro 11, 2006

Domingo

Nem começou a chover: o sonho do orvalho. Na falta de um sabiá, uma surra canta no quintal do vizinho, o menino pede, na cabeça não! O sorveteiro xinga o calor, o vento dá três tapinhas na saia da menina, cora de vergonha. Perto do meio dia as sombras recolhem as anáguas, suas partes íntimas. Aposta-se em chuva e futebol gorado.

Há quem jure de pés juntos que domingo é uma caixa de sapatos. Alguns, de audição mais apurada, pensam ouvir um trote, um cavalgar. Mas os fantasmas fazem a mesma manicura, e riem, fofoqueiros. Domingo é dia de usá-los com moderação. Vovó busca aquele ponto perdido no tricô. As janelas suam, a professora corrige as provas, uma massa de poeira atropela o guarda. Não há multas.

Os dez mandamentos se esconderam em meia garrafa de vinho. Dia do Senhor, mas que senhor ousaria vingá-lo, sofrê-lo? Um galo vai à panela, segunda não se canta. Quem casa, além de casa, quer caso. A amásia pede o cigarro, leva cinco facadas. Os vizinhos não ouvem a torneira, restos de sangue devorados pelo ralo.
A cigarra zine, o vento zune, o homem zum.

O menino, com os cacos do amor-próprio, deixa o bilhete do sorveteiro com a mãe. Sobressaltada, manda o filho curtir o domingo.


André Ricardo Aguiar

quinta-feira, setembro 07, 2006

Disciplina do paladar

Adalgisa comprou um pacote de doces caramelados. Mas, cada vez que levava um doce à boca, ele a beijava apaixonadamente. Os doces enamorados a alimentavam de um jeito que nada no mundo, nem doce nem namorado, conseguiria fazer.
Sem saber que era um sonho, só comeu um e guardou os outros para mais tarde. Acordou com as mãos e a boca vazias. E a sensação de ter sido roubada por si mesma.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, setembro 04, 2006

Teia de Penélope

Penélope não tinha nada de charmosa. Era assim-assim. Mas era uma dona de casa jeitosa e arrumou-se com Ulisses da borracharia. Eles se casaram: e dava na vista que o arrumado ia ser o inferno de um, purgatório de outro. Ninguém sabe ao certo quando os problemas começaram. Se Ulisses procurava Penélope e ela inventava uma dor de cabeça – razão do périplo dele pelos bares da vizinhança; ou se, os sumiços cada vez mais prolongados do malandro fizeram Penélope tomar gosto por tricô e traição. Sei que era essa a conversa ao longo dos anos: ele deu de beber com amigos em botecos longínquos; ela, postada à janela, atraía o cio de toda sorte de vagabundo: pra complicar, morava ao lado de uma mercearia.

Deu no que deu. Ulisses no meio do mundo – uns diziam que foi pego por dívidas e assassinado no Conjunto Creta, para os lados de Dois Morros. Já os credores – no santo ofício de acreditar no devo não nego, pago quando puder, diziam que Ulisses chegaria de surpresa, mais velho e cabreiro. Penélope cansou de tricotar uma colcha de casal. Aranha desiludida, desfez fio por fio sua história e foi viver de favores na casa de distantes parentes. Quase uma odisséia.

Arte de Olivier Maceratesi

André Ricardo Aguiar