segunda-feira, outubro 30, 2006

Observações metroviárias


Naquela estação tem um metrô fixo. Proposta de uma pequena empresa para os sem destino. Para quem não sabe onde pousar, para os cansados das chegadas e partidas, para os excêntricos. Um metrô com o mesmo comprimento da estação. Cujas portas se abrem, onde os passageiros tomam os assentos e recebem, através de projeções, imagens corridas de paisagens, bairros felizes, subúrbios idílicos. O metrô tem motores que acionam a trepidação e uma voz que anuncia paragens. É só um pouquinho mais caro que o metrô convencional. Mas já é um grande passo que o metrô não avance um metro.

André Ricardo Aguiar

quinta-feira, outubro 26, 2006

Atraso de vida

Quando eu era adulta, quis ter tempo. Um bicho macio e dócil, que me estendesse a patinha sempre que eu pedisse e voltasse conformado para sua gaiola quando eu assim o desejasse.
Gastei anos no adestramento, criei cronômetros de açúcar e chicotes verbais, tracei itinerários e gestuais.
Hoje, dormimos os dois aninhados entre os ponteiros de um relógio cujo ritmo não é ditado por nenhum de nós.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, outubro 23, 2006

Gato e canário

Quando eu era adolescente eu quis um gato: meu primo prontamente atendeu: entrou-me em casa com encarquilhada gaiola e sério canário. Tolo pássaro, eu disse. E quis logo que, à primeira falha, estourasse de tanto cantar. Era mudo, soube depois. Meu primo disse que o conservasse, pois era raro: um canário neurastênico.

Contra minha vontade, e desejando sempre a oportunidade de enfiar um gato aqui em casa, fui aturando a avezinha amarela. Estabeleci o fingimento de dar alpistes sem dar verdadeiramente: que morresse de fome ou de colapso nervoso. Vi que me encarava e no fundo de suas pupilas fervia o caldinho de seu ódio. Eu não deixava por menos. À parte o mutismo dos meus dias, de vez em quanto eu mesmo assoviava, por pirraça, uma ária qualquer, um hino de futebol, um samba. E a avezinha, muda, como se empalhada, um bico de indignação.

Quis um gato, e ainda mais: queria deixar o meu carinho para algo, um contraponto para a superstição de possuir uma ave idiota e estressada. Um dia apareceu-me uma vendedora de enciclopédias e contou, no calor da conversa, que possuía um filhote, já caçador de ratos e todo independente. No dia seguinte, apresentei o gato ao canário. Rindo-me por dentro, pareceu-me ver no contato um certo clima de arena romana.

Não me lembro se fiz de propósito ou se foi arroubo besta de antipatia. Sei que, por decisão higiênica, quis limpar a gaiola. Meti o canário numa caixa de papelão onde depositei numa mesinha, lá no quintal. Terminado o serviço, já no banho me dei conta: imaginava que por estas horas o gato já teria papado o passarinho. Corri do banheiro (nessas alturas odiava menos o canário) e – susto – vi sinais de arrombamento no caixote. O canário jazia extenuado, com restos de fúria, manchas de sangue no bico e uma nuvem de pelos ao redor. Transplantei-o para a gaiola. Foi encontrar o felino horas depois, tremido e roto entre umas malas e entulhos debaixo de um fogão à lenha aposentado. Era pouco menos que um gato, perdido o olho.

*Tela de Paul Klee
André Ricardo Aguiar

quarta-feira, outubro 18, 2006

Pluma


Para Rona


Então, o anjo dá uma gargalhada e grita: “é agora!”. E sai ventando sem esperar pelo milagre. Manutenção é trabalho humano.
Enquanto a última pena de asa não desaparece na poeira, tudo pode acontecer. A mulher do executivo dá à luz três gêmeos xifópagos que recusam cirurgia. A sequóia cresce na horizontal, como uma gigantesca planta rasteira, e invade a BR-3. O anel de noivado cai do bolso do rapaz e rola até os pés do garçom, que retribui com um sorriso apaixonado. O gato prestes a cair do telhado dá risada e sai voando. A chacoalhada mais forte do ônibus lotado faz reviver o corpo de uma senhora que já julgava as alegrias úmidas para sempre perdidas. O mau aluno escreve poemas na aula de matemática e descobre a fórmula de uma nova vacina. A gente encontra um velho amigo que nunca viu antes e celebra.
É a última pena do anjo, aquela que flutua na poeira da estrada, ainda misturada com cheiro de gasolina e mundo.
A única capaz de produzir milagres reais.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, outubro 16, 2006

O cúspula

O cúspula é um animal de médio porte, de pelo rasteiro. Emite um cheiro desagradável e tem como defesa o grito agudo, capaz de partir copos de vidro, cristal. Não existe notícia de caçadores de cúspulas. Mas os que se arriscam à lenda, esses velhinhos surdos que caçaram na floresta, no capão, explicam que a surdez foi acidente com cúspulas. Uma história mal contada, por sinal. Um cúspula ataca no grito, vive solitário e seus hábitos lembram os de um macaco assustado ou de um tatu muito tímido. Quando um cúspula encontra outro, só um sairá vivo. A morte de um cúspula é de mau agouro – e nas matas, os galhos e arbustos devassados indicam que um cúspula foi cuspido para fora da vida. O cheiro é mais insuportável ainda. Os pelos são duros, e quando roçam, sem querer, em outro bicho ou mesmo em gente, causam feridas profundas. Nunca mais foram vistos, mas nos lugares em que habitavam o ouvido apurado percebe uma eletricidade tremelicante no ar.

André Ricardo Aguiar

quarta-feira, outubro 11, 2006

Noiva no sinal vermelho

Mas não tem juízo, essa moça. Tão bonita no seu carro. Sei de tudo. Olho tudo daqui da minha janela. Tenho visão privilegiada do sinal que obriga os carros a pararem por tanto tempo. Eles, os motoristas, amaldiçoam o cruzamento. Eu, não. Gosto dele. Lento, me dá tempo de espiar por dentro dos carros, ver as pessoas, saber quem passa aqui todo dia e quem está só de passagem.
Essa moça, a sem-juízo, vem todo dia, menos sábado e domingo. À mesma hora. Oito e meia da manhã, pouco mais pouco menos, chega o carrinho dela. Deve ir para o trabalho. É azul, veja só que cor mais sem graça para um carro. Tem jeito de ser pintado. Tem jeito de ser velho. Mas ela é nova, a moça. E bonitinha mesmo.

Chega com os vidros fechados. Mas não tem a menor pinta de ter ar refrigerado ali dentro, não. Em dia de muito calor, ela deixa uma frestinha em cima. E pára no sinal com um ar já meio cansado, meio impaciente. Oito da manhã e já impaciente.
Acho que ela vai para o trabalho. E não gosta do trabalho. Chega com uma cara meio sofrida, como se tivesse deixado em casa alguma coisa muito importante, muito boa, que não merecia ser trocada pelo emprego.

Mas não tem juízo. Sei, eu sei de tudo. Sei até que ela tem bom coração. Não fosse por isso, o que explicaria todo dia ela abrir os vidros para o sujeito que vende bala no sinal?
Esse sujeito está aqui faz bem uns três anos. Também chega todo dia muito cedo e traz uma caixinha de pastilhas de hortelã. O porteiro do prédio diz que ele é velho de rua. Diz que ficava antes na esquina da Barão do Flamengo com Praia. Depois, foi para a São Clemente.

É danado o sujeito. Sabe onde o trânsito engarrafa. O porteiro diz também que ele já foi muito engraçado, que fazia todo mundo rir e comprar muita pastilha. Conta que ele vende bala no sinal desde menino. Imagine, esse sujeito parece mais velho do que eu.
Não vejo a menor graça nele. Aliás, acho o homem perigoso. De tão magro, os olhos pulam da cara preta e barbada. Não faz força para manter os olhos abertos, não. Estão sempre meio fechados, meio olhando para todos os lados. E explora os motoristas. Nunca vi uma pastilha de hortelã tão cara. Meu deus do céu! Só mesmo intimidados, os de-carro pagam um real inteiro por uma pastilha que custa dez centavos em qualquer botequim.

Todo mundo fecha o vidro para ele. Todo mundo tem medo. Menos a moça bonita e sem juízo. Ela abre. Abre o vidro e compra uma montanha de pastilhas. Todo dia.
O espertinho já conhece o carro. É só ver a lataria azul aparecendo que corre na direção da moça, gritando que ela é noiva dele, que ele vai casar com ela, que ela é linda, vê se pode uma coisa dessas. E a sem-juízo dá todo dia um real, às vezes cinco reais quando ele diz que está fazendo aniversário. Esse sujeito diz que faz aniversário bem umas dez vezes por ano. Mas ela faz que não percebe e compra cinco reais de pastilha. Ele fica gritando da calçada quando ela parte. Grita que ela é linda. Que vai casar com ela. Ele tem o olho doido e só eu sei disso.

Semana passada, ela chegou mais animadinha. Ainda tinha no rosto uns restos de sorriso, daqui eu podia ver. E, quando parou no sinal, deu pra ver direitinho um anel bem grande, lindo, reluzente, uma estrela no dedo.
O maluco das pastilhas também viu. Perguntou do anel novo. Ela respondeu rindo, o vidro todo arriado, que tinha ficado noiva de um homem rico, ia até mudar de carro. Que o moço do sinal prestasse atenção. Dia desses, ela ia chegar num carrão. Mas ia abrir o vidro e comprar pastilha, ia sim.
-- Mas você é minha noiva – gritou o das pastilhas, enquanto o carro sumia no sinal verde.

Ela não viu. Mas eu, sim. Eu vejo tudo.
Eu vi o brilho da perda nos olhos dele. E ouvi os gritos que ele deu o dia inteiro. Você é minha noiva, ela berrava para todas as mulheres que paravam no sinal. Elas, que têm juízo, fechavam bem os vidros e fingiam que não tinha nada demais acontecendo do lado de fora.
Estou aqui, da minha janela, rezando para que a moça bonita tome juízo e mude de caminho.
Esse homem já perdeu demais.
E ela ainda nem começou a compreender o brilho que acende as manhãs de cada um de nós.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, outubro 09, 2006

Surras

Na casa de meus pais a surra cantava quase todo dia. Como tudo era apertado, a pancadaria significava mais alguma coisa quebrada além dos ossos. Eu nem sentia tanta dor assim: pródigo em ser o escolhido, tinha então um jeito de evitar as partes ou apelava para o que eu chamava de a fuga do rato, me esgueirando do cinto ou do chinelo e indo parar em alguma grande gaveta (enquanto, abafados, os gemidos de cumplicidade mórbida dos meus irmãos indicavam novas possibilidades de surra à mesma noite).

O gosto pela violência sempre foi uma constante aqui. Meu pai chegava do trabalho já puto com alguma coisa e pouco antes de afundar a cara num pântano de sopa, praticava alguma pancadaria, indo, numa escala evolutiva, desde o cão até o nosso vovozinho (velho, mas não fraco, frequentava a academia e sabia se defender com a bengala). Tínhamos o chamado quarto da gravidade: um minúsculo cubículo onde uma boa sova era aplicada. Aliás, uma arte da surra se formava ali: depois de alguns minutos, o carrasco e a vítima literalmente perdiam o chão e planavam, entre respingos de suor e sangue.

A convivência estava ficando insuportável. Ainda que fôssemos uma família de sangue quente, tínhamos um forte sentimento de ligação, uma fraternidade que ultrapassava o limite daquelas paredes sujas e amassadas. Vovô aumentava a frequência dos treinos de halterofilismo e remoia nos bolsos sabe-se lá que perdido estilete. Apenas uma vez, quando perdemos o nosso irmão caçula numa briga de gangues no quintal (acho que titio estava do lado oposto...) é que ficamos um pouco estremecidos e volta e meia o jantar ficava com um travo na garganta de alguém e mamãe rompeu a chorar uma ou outra vez, a arma carregada entre os vidros de tempero.

A violência não leva a nada, disse eu sossegadamente. Mamãe estava só e a tarde era uma das mais calmas, só com o eco da louça quebrada em próxima vizinhança. Minha mãe tomou um susto, tirou o bebê que mordia o seu peito e o pôs no cercado, puxou delicadamente a orelha defeituosa que eu tinha e disse, Olha aqui, nunca mais repita isso - e com o alicate que tinha por perto, arrancou-me uma unha como lição. Nunca mais me esqueci a crueldade da minha frase. Nem sei se minha mãe perdoou aquilo. Ou se contou a meu pai; ou se propôs a dar mais lições. Por via das dúvidas, hoje fico mais tempo no quarto, à espreita. E meu irmão me vendeu uma arma, ainda que por um preço exorbitante.

A gente nunca sabe a família que tem.

André Ricardo Aguiar

quinta-feira, outubro 05, 2006

Solo para fundo de mar

Para quem escuta, o som de um tapa na cara se limita a uma nota. Semibreve. Ninguém suspeita da polifonia corporal que vibra sem partitura ou controle.
Muda como eu. Como agora.
Posso escutar o som do sangue arranhando veias, o estrondo da adrenalina disparando seus processos, a mudança de cor da pele.
Só o que não se ouve é minha voz.
Desde que ele começou a falar, me deixei despencar em um abismo líquido e interminável. Sou um peixe, só escuto o que dizem minhas células.
Ele fala há muitos anos, mas sua voz vem de longe, de outro além, um cosmo inteiro serve de barreira entre meus ouvidos e a torrente de palavras que ele despeja. Grita que não é um fracassado, urra planos mirabolantes, promete cornucópias.
Me limito a olhar sua barba por fazer, sua cara de sono, a raiva que o envolve como um casaco estragado, o calor de seus caninos. Não preciso fechar os ouvidos, não se trata de uma sereia, é só um touro castrado.
Você vem comigo, vamos vender tudo, vamos começar uma vida nova bem longe daqui, ele alucina. E eu só olho, uma escama afiada em cada pupila, no meu dinheiro ninguém põe a mão. Foi arrancado de cada minuto de trabalho meu enquanto ele sonhava uma vida que não pode mais existir no futuro, porque já se acabou.
Ficar em silêncio foi uma conquista, urdida com capricho ao longo de muitos anos. No começo, eu aconselhava. Mais tarde, argumentava. Uns anos mais e respondia ofensas com outras ofensas. Até o dia em que percebi que não existia palavra mágica, nem prece, nem poema, nem insulto capaz de produzir respostas. Estava diante de uma solidão absoluta, de um código desprovido de senhas, de um fim fechado dentro do fim: como um abismo seco.
Então, me calei e, pela primeira vez, meu silêncio foi cortado pelo som de uma bofetada. Só abri a boca para sorrir.
Foi quando senti que tinha os dentes gelados.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, outubro 02, 2006

Espelhos e olhares

A primeira vez que a vi ela não me olhou. Mas me causou profunda impressão sua cabeleira basta de serpentes. Eu era um simples advogado e fui contratado para uma questão simples. Essa primeira visita, intermediada por sua governanta numa impressionante mansão, foi marcante. Medusa era uma mulher voluptuosa, de voz doce, porém enérgica. A questão nem vem ao caso. Mas o espelhinho bem posicionado na mesa foi o nosso primeiro flerte. Outros viriam.

Passei a visitá-la constantemente. Com um pouco mais de dois ou três meses, admitimos uma paixão avassaladora. Ato contínuo, fui de malas prontas para sua casa. O casamento foi uma cerimônia simples e preferi estar de olhos vendados para o beijo de núpcias.

O casamento parecia ir de bem a melhor. Graças a sua fortuna, deixei de exercer minha profissão e passei a dedicar-me a futilidades culturais. Não recebia os amigos porque minha mulher, um dia, mostrou no salão norte, o efeito de tentar fazer amizades: uma imensa coleção de estátuas lívidas, aterrorizadas, mudas.

Depois de uma longa conversa com os olhos baixos, pedi a Medusa que aumentasse o arsenal de espelhos na nossa casa. Custava-me o meu desejo, o meu amor, não ter sequer a hombridade de encarar minha esposa nas questões mais banais. Já tinha vencido a repulsa inicial de passar a mão na sua cabeleira – onde, felizmente, suas cobrinhas foram esterilizadas nos venenos e levemente picavam meus dedos em dias de maior excitação. Só faltava o contato fundamental dos nossos olhares. O que era simples: uma coleção de espelhos de variados tamanhos, posicionados em todos os cantos da mansão. Não esqueci de incluir na lista, com certo gosto malicioso, o espelho oval para o nosso quarto.

Medusa tinha a alma melancólica. Também era insegura. Mas gostava de mim. E não se perdoaria se um acidente me petrificasse. Concordou em parte, embora não confiasse em espelhos. A duplicação de uma coisa tão relativa quanto à realidade não a deixava menos mitológica. Temia pelo pior.

Os espelhos foram pendurados. Eu mesmo adquiri um espelhinho de bolso e, em momentos de intimidade ou quando precisava dizer uma palavra de carinho, gostava de olhar no reflexo. Cada dia me apaixonava mais. E em cada vez, minha Medusa encontrava-se mais e mais angustiada. O ato de mirar um espelho, seja em qualquer canto da casa, parecia superficial. Como uma amortização da repulsa. Em momentos de maior desespero, Medusa movia seus olhos rapidamente pelo meu rosto. Dispensava os espelhos e eu aceitava uma piscadela, ainda que temerária. O resultado afetou minha pele: uma leve casca de mármore, removida com um pequeno pente.

Aumentei a quantidade de espelhos. A casa toda parecia uma dessas construções de ilusão de ótica. Isolamos-nos do mundo. É triste dizer, mas o casamento estava em crise. Mas passeávamos pelo jardim e deixamos aos cuidados de nossa descendência – sim, tivemos filhos – a manutenção da mansão. E distraídos, ao fazer um balanço do casamento, decidi que, mesmo não conhecendo minha mulher nos seus secretos sentimentos, por achar que só no olhar desvendaria certo código, juraria eterno amor. E como havia esquecido o espelhinho – ou talvez fiz de propósito – olhei nos seus olhos. Ela tremia de emoção, quase não sustentando o olhar. Amei-a até aquele momento. Depois me afastei, deixando uma bela estátua no banco do jardim. Meu coração tornou-se pedra.

André Ricardo Aguiar