tag:blogger.com,1999:blog-85688502024-03-07T06:16:56.221-03:00fábula portátilTextos de nariz sutil de Rosa Amanda Strausz e André Ricardo Aguiar.fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.comBlogger47125tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-54878000703806449252010-09-10T08:02:00.000-03:002010-09-10T08:03:52.127-03:00Lugar comum I<span class="Apple-style-span" style="font-family: arial, sans-serif; font-size: 13px; border-collapse: collapse; ">Pare de botar minhoca na cabeça de sua irmã – dizia a mãe ao menino, que nem ligava e prosseguia, fascinado com as tranças vivas que produzia.</span><div><span class="Apple-style-span" style="font-family: arial, sans-serif; font-size: 13px; border-collapse: collapse; "><br /></span></div><div style="text-align: right;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: arial, sans-serif; font-size: 13px; border-collapse: collapse; ">Rosa Amanda Strausz</span></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-84311539463168220772007-04-28T17:09:00.000-03:002007-04-28T17:10:42.471-03:00Dentro do olho, o diamanteO cadáver foi encontrado no padrão comum dos crimes bárbaros: degolado. O motivo do crime está guardado comigo. A polícia fez busca e vistoria, mas deixou intacto o copo d’agua onde divido o aluguel com o par de dentaduras.<br /><br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com18tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-44371662044911594422007-03-05T22:21:00.000-03:002007-03-04T22:30:00.298-03:00O feitiço se volta contra o feiticeiro*<span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></em></span><br /><span style="font-size:85%;"><em><span style="font-family:trebuchet ms;">* </span></em>Stephan Loyd, contista afamado, ganhador do Book Prize de 2003, criador da extensa e falsa biografia de si mesmo, por sofrer ultimamente de súbitas quedas de memória, embora não me venha à cabeça o nome verdadeiro da enfermidade, contratou um ghost writer para continuar escrevendo a série de histórias policiais de estilo noir passado em Guiné Bissau, onde se misturam tramas tribais e rituais de magia negra. O ghost writer, no entanto, segundo informou a assessoria de comunicação da editora que publica os livros de Stephan Loyd, também tomou sumiço, deixando, lamentavelmente, um conjunto de páginas em branco e alguns títulos do que viria a ser a nova leva de histórias policiais do aclamado escritor. Fica, portanto, a título de desculpas, esta importante série recém-inaugurada da coleção Histórias policiais em títulos, pelo alto apelo comercial que o nome de Stephan Loyd (que leva a crer que o sumiço é uma possível jogada de marketing) tem entre seus fiéis leitores. O ghost writer e a namorada do escritor também estão sumidos e o fato da polícia ter sido acionada em nada justificaria a omissão desta inovadora série. N.E.</span>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-45124029129143079742007-02-22T00:46:00.000-02:002007-02-22T00:48:28.026-02:00A fada mostra os dentesDentro do saco que a fada carregava às costas havia um par de olhos verdes, dois pacotes de goiabada, sapatinhos de cristal mais um par de chinelos velhos, uma declaração de amor eterno trazendo no verso uma carta de rompimento sereno, uma garrafa de água gelada, três doses de cachaça, uma passagem de avião para Rondônia, um diploma de alfabetização, um marido de estimação, um dicionário de rimas e uma muda de jequitibá.<br />Quando as artérias de Quitéria explodiram, quatro filhotes de rouxinol saíram lá de dentro.<br />Rapidamente, a fada aproximou-se, recolheu os pássaros e deixou uma moedinha em seu lugar.<br />Nem todas as fadas recolhem dentes.<br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strausz</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-50235070936388290322007-01-29T15:58:00.000-02:002007-01-29T16:00:45.543-02:00Ninguém move SuelySuely vivia fechada numa casa de várias portas e poucos parentes. Desde pequena era birrenta, malcriada, estranha. Colecionava porta-retratos vazios, canetas cegas e vestidinhos de infância. Não tinha namorado, embora acorressem aquela casa vários pretendentes das ruas circunvizinhas. Era bela ao seu modo, um tipo de beleza que assustava. Conseguiu chegar a tia, a uma idade que cuidava ser ultrapassada. Esperava rugas, que não vieram. A menopausa atrasada. Amava palavras cruzadas, mas detestava os sobrinhos. Por último, só aturava os outros parentes e tinha crises histéricas. Os talheres voaram, móveis foram movidos, a tv espatifou.<br /><br />Suely não se achava paranormal. Ou talvez um pouco: mas estava na ordem tão prática dos seus dias, que aqueles fenômenos sabiam mais a variações de humor. Vivia trancada em casa, não tinha veleidades de buscar mudanças de rotina numa cidade do interior. Poucos a conheciam de rosto, muitos de nome. E aumentavam seus feitos. Responsável pela queda do obelisco na noite de natal. Rachaduras na Prefeitura. Prejuízo para os donos de bicicletas, com os aros retorcidos. A boataria incomodava a família, mas a vida seguia o seu curso.<br /><br />Não havia muito que fazer. Em cidade do interior, escolhem a lenda, deixam os fatos de fora. A velha casa e a família há muito formam uma imagem de janelas mortas, jardins crestados, ferrugem no portão. Suely, de um momento para outro, rangia seus ossos e arrastava (agora com esforço e com as mãos) uma cadeira de balanço para o quintal, para tomar um gole de sol. Volta e meia, em algum ano memorável, balança o lustre, curvam-se velhos álbuns, uma vassoura varre o assoalho. Suely nem se dá conta, de pálpebras cerradas num cochilo, do ciúme dos fantasmas que foram relegados em segundo plano.<br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1167873806656939472007-01-03T23:19:00.000-02:002007-01-03T23:23:26.676-02:00Um gato chamado MussorgskiChove lá fora.<br />Mas só os olhos do pintor vertem água.<br /><br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strausz</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1166451184464240062006-12-18T12:11:00.000-02:002006-12-18T12:13:04.486-02:00Favela Futebol ClubeToca aqui, dribla acolá, esses moleques descem o morro. A origem da pelada ninguém sabe: a bola, meio remendada às pressas. Alguns PMs na contramão, mas os meninos não se fazem de rogados. Anjos sem chuteiras, a bola ainda chega a bater num policial. O fardado ri, uma mão no 38, outra num meneio que devolve a bola. O jogo desce o morro, a bola evita uma vidraça, e nesse bem bolado sistema, chegam a um mirante. Do outro lado o morro é fendido por uma grota e só um ronaldinho bem bombado daria um chute, um pé de canhão para alcançar a laje de uma casa onde espera o outro time. A movimentação na pequena área, um deles marca bem a posição, finta e dribla, põe a mira no gatilho dos olhos, toma espaço e solta a canela: a bola descreve um arco – a tensão é de um pênalti – e um que estica os braços e recebe o bolaço no peito. Os dois lados comemoram com tiros. Estamos quites, parecem dizer – a bola é rasgada e do seu ventre saem saquinhos do mais puro pó – o jogo empatado, uma bela partida, 1 x 1.<br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1166059567109790762006-12-13T23:24:00.000-02:002007-01-25T10:05:03.343-02:00Salão de beleza- Faz minhas unhas?<br />A moça sentou-se no banquinho, pegou os dedos da cliente e botou, na ponta de cada um, uma unha.<br />- Faz meu cabelo?<br />O rapaz colou, fio por fio, uma longa cabeleira sobre seu crânio.<br />- Faz minha sobrancelha?<br />Veio outra moça e plantou-lhe um belo par de sobrancelhas negas sobre a superfície rigorosamente plana do rosto.<br />- Faz meus olhos?<br />Fez-se silêncio no salão.fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1165836701091324872006-12-11T09:28:00.000-02:002006-12-11T09:31:41.103-02:00Moonlight Serenate<strong>Lua morta*</strong><br /><br />A noite é fria e carregamos os instrumentos. Bandolim, cavaquinho, violão, uma flauta. Nós somos um grupo coeso e vivemos conforme a música. Aí pintou um serviço, família de conceito, menina romântica, bairro distante. Então conversamos, acertamos a música, que tipo de andamento e tal e torcemos, torcemos muito por uma noite de lua morta, baça, escondida.<br /><br /><strong>Rua torta*<br /></strong><br />O caminho é um samba de crioulo doido. É um bairro de classe média baixa, cheio de ruas tortas, ladeiras, um ou outro trecho mal formado. O rapaz do violão diz, meio que brincando, que o bairro é assombrado pelos fantasmas de antigos traficantes. <em>Não brinca, cara</em>. Aí dobramos à esquerda e na última esquina, afinamos os instrumentos: estilete, alicate, chave inglesa.<br /><br /><strong>Tua porta*</strong><br /><br />Quando chegamos defronte a casa, tomamos o cuidado de uma inspeção ampla. Nenhuma alma na rua. Começamos baixinho com uns dedilhados. Quando, em crescendo, espero lascar com meu vozeirão, quando as primeiras pupilas das janelas acendem, eu dispenso um e outro, que dão a volta na casa. O combinado – o código musical – será tocado no momento certo. Lá estão o pai, a mãe, a filha e a empregada pendurados nas janelas. Eles riem embevecidos da serenata. Aumentamos o tom, quando sentimos, pelo compasso, que o serviço está para ser feito. Não se ouve nada, não há latidos de cães, e nos fundos da casa, a música chega no calculado refrão, indicando que podem dar conta, fazer a feira, raspar o tacho. Depois, recolhemos os instrumentos e nem sequer aceitamos as gorjetas. Saímos de fininho.<br /><br />Contamos o produto, dividimos com justeza e olhamos pros lados, meio temerosos dos assaltos. Descemos o caminho de volta com a sensação dupla: dançamos conforme a música e eles dançam juntos.<br /><br /><em><span style="font-size:78%;">*(Conto a partir do poema de Cassiano Ricardo, Serenata Sintética)</span></em><br /><em><span style="font-size:85%;"></span></em><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1164851849904244752006-11-29T23:56:00.000-02:002006-11-29T23:57:29.916-02:00YesO Y era tão nítido que quase podia vê-lo. Como se fosse uma imagem de ressonância magnética do crânio, mas sem imagem nenhuma, só a dor. Um repuxo em três pontos: um em cada têmpora e o último no alto da cabeça. Cordas de uma guitarra tensa que vibrava sem melodia.<br />Antes mesmo de abrir os olhos, pela manhã, já podia senti-lo, embora fosse impossível determinar sua causa. É só uma dor de cabeça, explicava a quem perguntava o motivo dos óculos escuros.<br />Um dia, um daqueles dias de Y em aço cravado nos miolos, pensamentos imprestáveis, uma irritação incontida, o médico do serviço de saúde da empresa bocejando entediado:<br />- Não posso lhe dar mais um dia de licença. Já é o oitavo deste mês. Dor de cabeça, agora, só daqui a uma semana, entendeu?<br />Fez que sym com a cabeça. Sym com Y.<br />E retornou à sua mesa.<br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strausz</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1164022413516225082006-11-20T09:31:00.000-02:002006-11-20T09:33:33.526-02:00Uma semana toda de domingosA primeira sensação que tive ao sair da prisão por um túnel lamacento foi a da abertura de um útero. A segunda, de desespero, porque o túnel dava para um fundo de poço. Um pouco mais estreito que minha ex-cela. Pelo que sei, fica em algo parecido a um matagal e de sua boca escancarada de céu vejo uma ramagem turva de árvores e uma vírgula de nuvem, além de um fio de alta tensão. E só.<br />Alimento-me das frutas podres que caem ocasionalmente por obra da ironia e mato minha sede com alguma chuva que sempre se avizinha. Tão só, não tenho ganas de voltar pelo túnel e morrer contrabandeando pequenas liberdades. De vez em quando, quando tenho forças, escalo o poço, mas invariavelmente caio com estrépito no lençol de folhas podres, urina e terra de ninguém. Assim, passo a maior parte do tempo dormindo com minhas feridas, esperando, respectivamente, que morra algo de mim nessa semana feita de domingos, esticada num calendário incerto em que minha existência fica mais ou menos rente à figura de Jó, sem nada, mas um nada mais patético, porque aqui neste poço nem Deus se dispôs a baixar e amaldiçoar a minha vida.<br />Ouço vez ou outra, barulho de terra caindo do túnel, onde mais uma vez apagam o registro. Ao fim do interminável domingo alcanço a borda do poço, já sem forças, e vejo, ainda com o fôlego pendurado, o mesmo pátio da cadeia, a sombra da nuvem que cobre a guarita do guarda, o fio de alta tensão que alimenta o holofote e a árvore doente e cativa. Não termino o pensamento, pois a bota do guarda me empurra de volta para o fundo do poço, e em vez de fruto, cai uma pá e um grunhido que diz <em>cave de volta o seu túnel e comece de novo</em>.<br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1163645632235495692006-11-16T00:51:00.000-02:002006-11-16T01:06:03.813-02:00O brasão<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/4348/443/1600/moebius%20strip%20II.jpg"><img style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/4348/443/320/moebius%20strip%20II.jpg" border="0" /></a><br />- Um brasão, Heraldo?<br />Por que não? Já tinham tudo o que queriam. Só lhes faltava um passado.<br />- Como se faz um brasão?<br />Não é difícil. Nós mesmos nos outorgamos a honraria. O que nossa família fez que merecesse destaque?<br />- Teu pai matou dois homens.<br />- Ponha dois revólveres no desenho. Foi a bala.<br />- Quando você era pequeno, matou uma cobra a paulada.<br />- Ponha a cobra.<br />- Lembra quando o governador veio almoçar lá em casa? Eu assei um leitão. Posso botar o leitão?<br />- Põe, claro.<br />- E quando eu perdoei Zé Vicente?<br />Heraldo titubeou. A partida do caçula ainda lhe doía até os ossos. O rapaz batendo a porta de casa, gritando que não queria dinheiro sujo. As poucas notícias dando conta de Zé Vicente transformado em alfabetizador de adultos. Solteiro, divindo casa com um amigo. Pobre, afeminado, orgulhoso.<br />- Põe um punhal.<br />Severina Antônia Maria das Graças Assis da Silva não discutiu. Desenhou o punhal. À noite, começou a bordar. Os revólveres, a cobra, o leitão, o punhal. Com tudo pronto, pegou a linha preta e fez uma formiga, bem miúda, em cima do punhal.<br />Depois, bordou a agulha. E a linha. E ela própria bordando um brasão no centro do qual havia uma formiguinha. Era capaz de passar a noite inteira assim, mas lembrou do açucareiro destampado e correu para a cozinha.<br />Não se pode descuidar com as formigas.<br />Elas não dormem jamais.<br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strausz</em></div><br /><p> </p><p><span style="font-size:78%;"><em>Ilustração: Moebius Strip II - M.C.Escher</em></span></p>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1162814542447912952006-11-06T10:01:00.000-02:002006-11-06T10:02:22.460-02:00ChuvasSão tão belas as chuvas que descobri como formá-las. As nuvens são como essas roupas consentidas pelos fantasmas que se desassombram da gente. Acenam do varal. Ninguém pode contar-lhes as mais variadas viagens da forma. Tudo por culpa do vento, primo das chuvas. Algumas pressentidas como o melhor segredo depois do sermão do avô ou antes do fim da meninice.<br />Sabe-se lá onde nascem seus sítios de água. Cada gota segue uma direção, como um pensamento que se entrega à dispersão geral das coisas: pensamento, gota, lembrança, outra gota, respingos que parecem se dirigir para a eternidade. A chuva, as chuvas. Todo plural regando a palavra. As águas, como são conhecidas, no piquenique líquido de repiques e remorsos, selva de minúsculos códigos morses que, entre a sintaxe da ventaria e a melancólica posição de buda de certos moluscos, fazem dos frades de pedra pontos de encontro do musgo.<br />Os relógios, em dias de chuva, são mais cabisbaixos, seguem rentes ao chão das horas; as cacimbas sofrem de bulício, as cisternas engravidam. O mato cresce, maduro, ciente de ser a onda verde, o mar triste dos bovinos.<br />Hoje, se me perguntam sobre chuvas, mesmo entretecido de uma goteira de prédio cinzento na cidade grande, digo que sou formado em chuvas do interior. Das antigas.<br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1162439212608431612006-11-02T00:45:00.000-03:002006-11-02T00:46:52.620-03:00Almoço de domingoA luz da manhã invade o quarto feito um estampido. Cheiro de fruta quente, galinhas mortas, verduras urgentes, peixes que lentamente perdem seu frescor. Caixotes jogados do alto dos caminhões, gritos e a ladainha dos feirantes compõem uma sinfonia nervosa, fundo musical adequado para completar o cenário: é dia de festa.<br /><br />Clara sai à rua sem nem mesmo tomar café. Cai da cama diretamente para a feira livre. Precisa fazer compras para o almoço. É dia de festa, os sentidos pedem alimento especial.<br /><br />Percorre as barracas meio nervosamente. Tudo igual: laranja, quiabo, alho, louro, as flores de sempre. Até que enxerga uma barraquinha nova, miúda, cuja estrutura quase não se vê de tão abarrotada de mercadorias. Um pouco de tudo. Berinjelas minúsculas, alfavaca, peixes de cintilação multicolorida, cardamomo, garrafas azuis e verdes, palha de milho, fitas amarelas, louça de brechó, perdizes vivas, favas de baunilha, fumo de rolo, chá de tangerina.<br /><br />Olha tudo. Embrulha os peixes nas fitas, banha as perdizes com as garrafadas, enche xicrinhas de borda dourada com feijões verdes. Sai dali com a sacola pesada.<br /><br />Hoje é dia de servir risadas aos convidados.<br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strausz</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1162210067554357422006-10-30T09:04:00.000-03:002006-10-30T09:07:47.573-03:00Observações metroviárias<div align="center"><a href="http://photos1.blogger.com/blogger/4348/443/1600/metrovi.jpg"><img style="DISPLAY: block; MARGIN: 0px auto 10px; CURSOR: hand; TEXT-ALIGN: center" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/4348/443/320/metrovi.jpg" border="0" /></a><br />Naquela estação tem um metrô fixo. Proposta de uma pequena empresa para os sem destino. Para quem não sabe onde pousar, para os cansados das chegadas e partidas, para os excêntricos. Um metrô com o mesmo comprimento da estação. Cujas portas se abrem, onde os passageiros tomam os assentos e recebem, através de projeções, imagens corridas de paisagens, bairros felizes, subúrbios idílicos. O metrô tem motores que acionam a trepidação e uma voz que anuncia paragens. É só um pouquinho mais caro que o metrô convencional. Mas já é um grande passo que o metrô não avance um metro.<br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div><br /></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1162006221988529852006-10-26T00:29:00.000-03:002006-10-30T15:44:38.266-03:00Atraso de vidaQuando eu era adulta, quis ter tempo. Um bicho macio e dócil, que me estendesse a patinha sempre que eu pedisse e voltasse conformado para sua gaiola quando eu assim o desejasse.<br />Gastei anos no adestramento, criei cronômetros de açúcar e chicotes verbais, tracei itinerários e gestuais.<br />Hoje, dormimos os dois aninhados entre os ponteiros de um relógio cujo ritmo não é ditado por nenhum de nós.<br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strausz</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1161604027360361352006-10-23T08:43:00.000-03:002006-10-23T08:48:35.360-03:00Gato e canário<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/4348/443/1600/cat_klee.jpg"><img style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; WIDTH: 244px; CURSOR: hand; HEIGHT: 234px" height="191" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/4348/443/320/cat_klee.jpg" width="192" border="0" /></a>Quando eu era adolescente eu quis um gato: meu primo prontamente atendeu: entrou-me em casa com encarquilhada gaiola e sério canário. Tolo pássaro, eu disse. E quis logo que, à primeira falha, estourasse de tanto cantar. Era mudo, soube depois. Meu primo disse que o conservasse, pois era raro: um canário neurastênico.<br /><br />Contra minha vontade, e desejando sempre a oportunidade de enfiar um gato aqui em casa, fui aturando a avezinha amarela. Estabeleci o fingimento de dar alpistes sem dar verdadeiramente: que morresse de fome ou de colapso nervoso. Vi que me encarava e no fundo de suas pupilas fervia o caldinho de seu ódio. Eu não deixava por menos. À parte o mutismo dos meus dias, de vez em quanto eu mesmo assoviava, por pirraça, uma ária qualquer, um hino de futebol, um samba. E a avezinha, muda, como se empalhada, um bico de indignação.<br /><br />Quis um gato, e ainda mais: queria deixar o meu carinho para algo, um contraponto para a superstição de possuir uma ave idiota e estressada. Um dia apareceu-me uma vendedora de enciclopédias e contou, no calor da conversa, que possuía um filhote, já caçador de ratos e todo independente. No dia seguinte, apresentei o gato ao canário. Rindo-me por dentro, pareceu-me ver no contato um certo clima de arena romana.<br /><br />Não me lembro se fiz de propósito ou se foi arroubo besta de antipatia. Sei que, por decisão higiênica, quis limpar a gaiola. Meti o canário numa caixa de papelão onde depositei numa mesinha, lá no quintal. Terminado o serviço, já no banho me dei conta: imaginava que por estas horas o gato já teria papado o passarinho. Corri do banheiro (nessas alturas odiava menos o canário) e – susto – vi sinais de arrombamento no caixote. O canário jazia extenuado, com restos de fúria, manchas de sangue no bico e uma nuvem de pelos ao redor. Transplantei-o para a gaiola. Foi encontrar o felino horas depois, tremido e roto entre umas malas e entulhos debaixo de um fogão à lenha aposentado. Era pouco menos que um gato, perdido o olho.<br /><br /><span style="font-family:arial;font-size:78%;">*Tela de Paul Klee</span><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1161226336689529662006-10-18T23:48:00.000-03:002006-10-18T23:52:16.706-03:00Pluma<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/4348/443/1600/pluma2.jpg"><img style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/4348/443/200/pluma2.jpg" border="0" /></a><br /><div align="right"><em><span style="font-size:85%;">Para Rona</span></em></div><br /><br />Então, o anjo dá uma gargalhada e grita: “é agora!”. E sai ventando sem esperar pelo milagre. Manutenção é trabalho humano.<br />Enquanto a última pena de asa não desaparece na poeira, tudo pode acontecer. A mulher do executivo dá à luz três gêmeos xifópagos que recusam cirurgia. A sequóia cresce na horizontal, como uma gigantesca planta rasteira, e invade a BR-3. O anel de noivado cai do bolso do rapaz e rola até os pés do garçom, que retribui com um sorriso apaixonado. O gato prestes a cair do telhado dá risada e sai voando. A chacoalhada mais forte do ônibus lotado faz reviver o corpo de uma senhora que já julgava as alegrias úmidas para sempre perdidas. O mau aluno escreve poemas na aula de matemática e descobre a fórmula de uma nova vacina. A gente encontra um velho amigo que nunca viu antes e celebra.<br />É a última pena do anjo, aquela que flutua na poeira da estrada, ainda misturada com cheiro de gasolina e mundo.<br />A única capaz de produzir milagres reais.<br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strausz</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1161024178204039172006-10-16T15:41:00.000-03:002006-10-16T15:42:58.226-03:00O cúspulaO cúspula é um animal de médio porte, de pelo rasteiro. Emite um cheiro desagradável e tem como defesa o grito agudo, capaz de partir copos de vidro, cristal. Não existe notícia de caçadores de cúspulas. Mas os que se arriscam à lenda, esses velhinhos surdos que caçaram na floresta, no capão, explicam que a surdez foi acidente com cúspulas. Uma história mal contada, por sinal. Um cúspula ataca no grito, vive solitário e seus hábitos lembram os de um macaco assustado ou de um tatu muito tímido. Quando um cúspula encontra outro, só um sairá vivo. A morte de um cúspula é de mau agouro – e nas matas, os galhos e arbustos devassados indicam que um cúspula foi cuspido para fora da vida. O cheiro é mais insuportável ainda. Os pelos são duros, e quando roçam, sem querer, em outro bicho ou mesmo em gente, causam feridas profundas. Nunca mais foram vistos, mas nos lugares em que habitavam o ouvido apurado percebe uma eletricidade tremelicante no ar.<br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1160620623340341882006-10-11T23:36:00.000-03:002006-10-11T23:41:01.080-03:00Noiva no sinal vermelhoMas não tem juízo, essa moça. Tão bonita no seu carro. Sei de tudo. Olho tudo daqui da minha janela. Tenho visão privilegiada do sinal que obriga os carros a pararem por tanto tempo. Eles, os motoristas, amaldiçoam o cruzamento. Eu, não. Gosto dele. Lento, me dá tempo de espiar por dentro dos carros, ver as pessoas, saber quem passa aqui todo dia e quem está só de passagem.<br />Essa moça, a sem-juízo, vem todo dia, menos sábado e domingo. À mesma hora. Oito e meia da manhã, pouco mais pouco menos, chega o carrinho dela. Deve ir para o trabalho. É azul, veja só que cor mais sem graça para um carro. Tem jeito de ser pintado. Tem jeito de ser velho. Mas ela é nova, a moça. E bonitinha mesmo.<br /><br />Chega com os vidros fechados. Mas não tem a menor pinta de ter ar refrigerado ali dentro, não. Em dia de muito calor, ela deixa uma frestinha em cima. E pára no sinal com um ar já meio cansado, meio impaciente. Oito da manhã e já impaciente.<br />Acho que ela vai para o trabalho. E não gosta do trabalho. Chega com uma cara meio sofrida, como se tivesse deixado em casa alguma coisa muito importante, muito boa, que não merecia ser trocada pelo emprego.<br /><br />Mas não tem juízo. Sei, eu sei de tudo. Sei até que ela tem bom coração. Não fosse por isso, o que explicaria todo dia ela abrir os vidros para o sujeito que vende bala no sinal?<br />Esse sujeito está aqui faz bem uns três anos. Também chega todo dia muito cedo e traz uma caixinha de pastilhas de hortelã. O porteiro do prédio diz que ele é velho de rua. Diz que ficava antes na esquina da Barão do Flamengo com Praia. Depois, foi para a São Clemente.<br /><br />É danado o sujeito. Sabe onde o trânsito engarrafa. O porteiro diz também que ele já foi muito engraçado, que fazia todo mundo rir e comprar muita pastilha. Conta que ele vende bala no sinal desde menino. Imagine, esse sujeito parece mais velho do que eu.<br />Não vejo a menor graça nele. Aliás, acho o homem perigoso. De tão magro, os olhos pulam da cara preta e barbada. Não faz força para manter os olhos abertos, não. Estão sempre meio fechados, meio olhando para todos os lados. E explora os motoristas. Nunca vi uma pastilha de hortelã tão cara. Meu deus do céu! Só mesmo intimidados, os de-carro pagam um real inteiro por uma pastilha que custa dez centavos em qualquer botequim.<br /><br />Todo mundo fecha o vidro para ele. Todo mundo tem medo. Menos a moça bonita e sem juízo. Ela abre. Abre o vidro e compra uma montanha de pastilhas. Todo dia.<br />O espertinho já conhece o carro. É só ver a lataria azul aparecendo que corre na direção da moça, gritando que ela é noiva dele, que ele vai casar com ela, que ela é linda, vê se pode uma coisa dessas. E a sem-juízo dá todo dia um real, às vezes cinco reais quando ele diz que está fazendo aniversário. Esse sujeito diz que faz aniversário bem umas dez vezes por ano. Mas ela faz que não percebe e compra cinco reais de pastilha. Ele fica gritando da calçada quando ela parte. Grita que ela é linda. Que vai casar com ela. Ele tem o olho doido e só eu sei disso.<br /><br />Semana passada, ela chegou mais animadinha. Ainda tinha no rosto uns restos de sorriso, daqui eu podia ver. E, quando parou no sinal, deu pra ver direitinho um anel bem grande, lindo, reluzente, uma estrela no dedo.<br />O maluco das pastilhas também viu. Perguntou do anel novo. Ela respondeu rindo, o vidro todo arriado, que tinha ficado noiva de um homem rico, ia até mudar de carro. Que o moço do sinal prestasse atenção. Dia desses, ela ia chegar num carrão. Mas ia abrir o vidro e comprar pastilha, ia sim.<br />-- Mas você é minha noiva – gritou o das pastilhas, enquanto o carro sumia no sinal verde.<br /><br />Ela não viu. Mas eu, sim. Eu vejo tudo.<br />Eu vi o brilho da perda nos olhos dele. E ouvi os gritos que ele deu o dia inteiro. Você é minha noiva, ela berrava para todas as mulheres que paravam no sinal. Elas, que têm juízo, fechavam bem os vidros e fingiam que não tinha nada demais acontecendo do lado de fora.<br />Estou aqui, da minha janela, rezando para que a moça bonita tome juízo e mude de caminho.<br />Esse homem já perdeu demais.<br />E ela ainda nem começou a compreender o brilho que acende as manhãs de cada um de nós.<br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strausz</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1160394840833649632006-10-09T08:47:00.000-03:002006-10-09T08:54:00.850-03:00SurrasNa casa de meus pais a surra cantava quase todo dia. Como tudo era apertado, a pancadaria significava mais alguma coisa quebrada além dos ossos. Eu nem sentia tanta dor assim: pródigo em ser o escolhido, tinha então um jeito de evitar as partes ou apelava para o que eu chamava de a fuga do rato, me esgueirando do cinto ou do chinelo e indo parar em alguma grande gaveta (enquanto, abafados, os gemidos de cumplicidade mórbida dos meus irmãos indicavam novas possibilidades de surra à mesma noite).<br /><br />O gosto pela violência sempre foi uma constante aqui. Meu pai chegava do trabalho já puto com alguma coisa e pouco antes de afundar a cara num pântano de sopa, praticava alguma pancadaria, indo, numa escala evolutiva, desde o cão até o nosso vovozinho (velho, mas não fraco, frequentava a academia e sabia se defender com a bengala). Tínhamos o chamado quarto da gravidade: um minúsculo cubículo onde uma boa sova era aplicada. Aliás, uma arte da surra se formava ali: depois de alguns minutos, o carrasco e a vítima literalmente perdiam o chão e planavam, entre respingos de suor e sangue.<br /><br />A convivência estava ficando insuportável. Ainda que fôssemos uma família de sangue quente, tínhamos um forte sentimento de ligação, uma fraternidade que ultrapassava o limite daquelas paredes sujas e amassadas. Vovô aumentava a frequência dos treinos de halterofilismo e remoia nos bolsos sabe-se lá que perdido estilete. Apenas uma vez, quando perdemos o nosso irmão caçula numa briga de gangues no quintal (acho que titio estava do lado oposto...) é que ficamos um pouco estremecidos e volta e meia o jantar ficava com um travo na garganta de alguém e mamãe rompeu a chorar uma ou outra vez, a arma carregada entre os vidros de tempero.<br /><br />A violência não leva a nada, disse eu sossegadamente. Mamãe estava só e a tarde era uma das mais calmas, só com o eco da louça quebrada em próxima vizinhança. Minha mãe tomou um susto, tirou o bebê que mordia o seu peito e o pôs no cercado, puxou delicadamente a orelha defeituosa que eu tinha e disse, Olha aqui, nunca mais repita isso - e com o alicate que tinha por perto, arrancou-me uma unha como lição. Nunca mais me esqueci a crueldade da minha frase. Nem sei se minha mãe perdoou aquilo. Ou se contou a meu pai; ou se propôs a dar mais lições. Por via das dúvidas, hoje fico mais tempo no quarto, à espreita. E meu irmão me vendeu uma arma, ainda que por um preço exorbitante.<br /><br />A gente nunca sabe a família que tem.<br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1160058888037932392006-10-05T11:33:00.000-03:002006-10-05T11:36:09.266-03:00Solo para fundo de marPara quem escuta, o som de um tapa na cara se limita a uma nota. Semibreve. Ninguém suspeita da polifonia corporal que vibra sem partitura ou controle.<br />Muda como eu. Como agora.<br />Posso escutar o som do sangue arranhando veias, o estrondo da adrenalina disparando seus processos, a mudança de cor da pele.<br />Só o que não se ouve é minha voz.<br />Desde que ele começou a falar, me deixei despencar em um abismo líquido e interminável. Sou um peixe, só escuto o que dizem minhas células.<br />Ele fala há muitos anos, mas sua voz vem de longe, de outro além, um cosmo inteiro serve de barreira entre meus ouvidos e a torrente de palavras que ele despeja. Grita que não é um fracassado, urra planos mirabolantes, promete cornucópias.<br />Me limito a olhar sua barba por fazer, sua cara de sono, a raiva que o envolve como um casaco estragado, o calor de seus caninos. Não preciso fechar os ouvidos, não se trata de uma sereia, é só um touro castrado.<br />Você vem comigo, vamos vender tudo, vamos começar uma vida nova bem longe daqui, ele alucina. E eu só olho, uma escama afiada em cada pupila, no meu dinheiro ninguém põe a mão. Foi arrancado de cada minuto de trabalho meu enquanto ele sonhava uma vida que não pode mais existir no futuro, porque já se acabou.<br />Ficar em silêncio foi uma conquista, urdida com capricho ao longo de muitos anos. No começo, eu aconselhava. Mais tarde, argumentava. Uns anos mais e respondia ofensas com outras ofensas. Até o dia em que percebi que não existia palavra mágica, nem prece, nem poema, nem insulto capaz de produzir respostas. Estava diante de uma solidão absoluta, de um código desprovido de senhas, de um fim fechado dentro do fim: como um abismo seco.<br />Então, me calei e, pela primeira vez, meu silêncio foi cortado pelo som de uma bofetada. Só abri a boca para sorrir.<br />Foi quando senti que tinha os dentes gelados.<br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strausz</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1159788571457769392006-10-02T08:26:00.000-03:002006-10-02T08:29:31.476-03:00Espelhos e olharesA primeira vez que a vi ela não me olhou. Mas me causou profunda impressão sua cabeleira basta de serpentes. Eu era um simples advogado e fui contratado para uma questão simples. Essa primeira visita, intermediada por sua governanta numa impressionante mansão, foi marcante. Medusa era uma mulher voluptuosa, de voz doce, porém enérgica. A questão nem vem ao caso. Mas o espelhinho bem posicionado na mesa foi o nosso primeiro flerte. Outros viriam.<br /><br />Passei a visitá-la constantemente. Com um pouco mais de dois ou três meses, admitimos uma paixão avassaladora. Ato contínuo, fui de malas prontas para sua casa. O casamento foi uma cerimônia simples e preferi estar de olhos vendados para o beijo de núpcias.<br /><br />O casamento parecia ir de bem a melhor. Graças a sua fortuna, deixei de exercer minha profissão e passei a dedicar-me a futilidades culturais. Não recebia os amigos porque minha mulher, um dia, mostrou no salão norte, o efeito de tentar fazer amizades: uma imensa coleção de estátuas lívidas, aterrorizadas, mudas.<br /><br />Depois de uma longa conversa com os olhos baixos, pedi a Medusa que aumentasse o arsenal de espelhos na nossa casa. Custava-me o meu desejo, o meu amor, não ter sequer a hombridade de encarar minha esposa nas questões mais banais. Já tinha vencido a repulsa inicial de passar a mão na sua cabeleira – onde, felizmente, suas cobrinhas foram esterilizadas nos venenos e levemente picavam meus dedos em dias de maior excitação. Só faltava o contato fundamental dos nossos olhares. O que era simples: uma coleção de espelhos de variados tamanhos, posicionados em todos os cantos da mansão. Não esqueci de incluir na lista, com certo gosto malicioso, o espelho oval para o nosso quarto.<br /><br />Medusa tinha a alma melancólica. Também era insegura. Mas gostava de mim. E não se perdoaria se um acidente me petrificasse. Concordou em parte, embora não confiasse em espelhos. A duplicação de uma coisa tão relativa quanto à realidade não a deixava menos mitológica. Temia pelo pior.<br /><br />Os espelhos foram pendurados. Eu mesmo adquiri um espelhinho de bolso e, em momentos de intimidade ou quando precisava dizer uma palavra de carinho, gostava de olhar no reflexo. Cada dia me apaixonava mais. E em cada vez, minha Medusa encontrava-se mais e mais angustiada. O ato de mirar um espelho, seja em qualquer canto da casa, parecia superficial. Como uma amortização da repulsa. Em momentos de maior desespero, Medusa movia seus olhos rapidamente pelo meu rosto. Dispensava os espelhos e eu aceitava uma piscadela, ainda que temerária. O resultado afetou minha pele: uma leve casca de mármore, removida com um pequeno pente.<br /><br />Aumentei a quantidade de espelhos. A casa toda parecia uma dessas construções de ilusão de ótica. Isolamos-nos do mundo. É triste dizer, mas o casamento estava em crise. Mas passeávamos pelo jardim e deixamos aos cuidados de nossa descendência – sim, tivemos filhos – a manutenção da mansão. E distraídos, ao fazer um balanço do casamento, decidi que, mesmo não conhecendo minha mulher nos seus secretos sentimentos, por achar que só no olhar desvendaria certo código, juraria eterno amor. E como havia esquecido o espelhinho – ou talvez fiz de propósito – olhei nos seus olhos. Ela tremia de emoção, quase não sustentando o olhar. Amei-a até aquele momento. Depois me afastei, deixando uma bela estátua no banco do jardim. Meu coração tornou-se pedra.<br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1159454638244754102006-09-28T11:40:00.000-03:002006-09-28T11:43:58.256-03:00Tempo IIIGanhou três gravuras chinesas com fundo vermelho. Uma borboleta ladeada por dois morcegos; um peixe e um dragão. Emoldurou o presente em laca e pendurou na sala, adivinhando significados místicos nos quadros e nas intenções de quem os deu.<br />Eram três ilustrações para rótulos de caixas de fósforo, descobriu anos depois. E ficou ainda mais encantada com a irrupção daquela beleza repentina. Desde esse dia, quando lhe perguntam o que querem dizer as gravuras, sorri misteriosa. De que adiantaria explicar a morte dos nossos pequenos deuses?<br /><br /><span style="font-size:85%;"><em>*Conto extraído do livro Mínimo Múltiplo Comum.</em></span><br /><br /><div align="right"><em>Rosa Amanda Strauz</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-8568850.post-1159188429349643702006-09-25T09:40:00.000-03:002006-09-25T09:47:09.360-03:00Soldadinho de chumboEra um soldadinho de chumbo e estava apaixonado pela bailarina da caixinha de música. Um chuvoso dia (folga dos brinquedos) propôs um passeio pelo armário. Já ia alta a lua recortada de alumínio. Sentaram-se à sombra de um grande joão-teimoso. E embora fosse de chumbo, o soldadinho derretia-se facilmente em afagos. Contava aventuras de guerra, dizia poemas épicos resumidos, marchava miudinho. A bailarina achando tudo aquilo divertido apenas.<br />Um dia, convocado, o bonequinho foi para a guerra. Longe, longe - no outro lado do quarto. A vida era dura, os soldados dormiam em caixas de fósforos abandonadas. O soldadinho escrevia cartas de amor e mandava por um camundongo. Nenhuma foi respondida. Até que a guerra se finda de uma vez e eis que o soldadinho de chumbo tem menos chumbo - perdera uma perna - e mais coração.<br />Mas grande desilusão! Manca que manca, sofre mais do que todas as batalhas perdidas. Encontra sua amada bailarinha nos braços de outro. Por sinal, um sujeito metido à pelúcia. Fora traído por um ursinho.<br /><br /><div align="right"><em>André Ricardo Aguiar</em></div>fábula portátilhttp://www.blogger.com/profile/02299075694681520155noreply@blogger.com4