Hermes tenta não contar para ninguém. Mas na sua casa tem uma casa de bonecas no porão. Que devia ser da bisavó, acha. Entre quinquilharias, lá está. É idêntica a uma casa em estilo vitoriano, o teto é uma tampa que se suspende, dá para espiar o interior e ver com orgulho o trabalho artesanal: as divisórias, os móveis liliputianos do quarto, um corredor, outro quarto, uma escadaria que leva ao térreo. Um mimo. Dá para olhar, agachado, todas as janelas, ver como o carpinteiro trabalhou as esquadrias, aqui e ali uns encaixes na parede imitando um quadro, totalmente kitsch. Enfim, entre teias de aranha, caixotes e crise de asma, uma vez ou outra ele vai lá espiar. Só que descobriu que não estava só.
Numa noite, pouco antes de ir dormir, antes de cerrar a porta do porão. Desceu novamente a escadaria e agachou-se defronte à casa de bonecas. Havia uma diminuta luz vagamente iluminando o quarto: era o abajur de plástico. Seguindo o rastro da luz, que lambia a cama de papelão, via-se os contornos de uma minúscula mulher (de plástico?) levemente ressonando. No banheiro, som de água, pia aberta, barulho de barbeador. Hermes, incrédulo, baixou a tampa do teto, esfregou os olhos. Guardar segredo. Não contar para ninguém. Uma casa de bonecas no porão, herança da bisavó. Mas achou que era demais, um sonho mau e cínico. Resolveu dar um tempo, parar com os comprimidos. Fruto de uma coleção de insônias. Hermes voltou à faculdade, para as aulas de lógica.
Uma semana depois, desceu ao porão. Parecia mais fundo, ele mesmo uma caixa de sapatos guardando a memória familiar. Ou onírica. Lá estava, meio azulada, a casa de bonecas. Um brinquedo inocente. Até certo ponto, não fosse o homenzinho encarrapitado no teto, fazendo reparos. Como se algum leviano tivesse batido com força. Parecia irritado. Depois desceu por uma escadinha e sumiu pelo flanco da casa. Hermes não chegou mais perto nesse dia. Por garantia, passou a chave na porta.
No dia seguinte, munido de lupa, a respiração contida. E por uma abertura – já não arriscava a dizer janela – olhou para o casal, o boneco virado para o fogo da lareira, um jornal aberto na cara, e a boneca tricotando um casaco. Parecia irritada. Parecia falar, sem meias palavras, sem conter o fôlego, o mover de lábios, dizendo palavras duras. Que o mundo não era brincadeira. E que existia sim, dentro da normalidade, a brecha. E dentro da brecha, a mão gigantesca – como um terrível deus – de um destino vigilante, que um dia (e disse isso para o marido, tricotando mais rápido, iracunda) ia se meter onde não era chamada.
André Ricardo Aguiar