segunda-feira, agosto 07, 2006

As aparências não enganam

Com muita dificuldade aquele velho curvado da aldeia fabrica um espelho para não refletir. O material é indócil, ele diz. Guardar segredo. No fundo do galpão, com vigor artesanal, mais um espelho fica pronto. Primeiro aquela superfície não entende e vai refletindo tudo: objetos, passados das pessoas, almas. Com o passar do dia, vai depurando e recusando certas reflexões. É o estágio, garante o artesão, da desilusão polida. Então, com a velhice antecipada do espelho, ele embala a imensa placa com moldura e despacha para o comprador.

Bem posicionado em casa antiga, começa a funcionar. Não reflete nada. Outro é o problema: qualquer coisa que o toca, vai para o outro lado. Uma mosca. Uma camareira curiosa. Uma réstia de sol e o vento arisco.

Então chega o cansaço, o enfado de ter um produto defeituoso. Chamam o velho curvado. Ele vai de praxe, e explica: este não é o lado certo do espelho – e com um puxão vigoroso na moldura, o espelho permanece, mas o mundo já é o outro.

Field-glass, tela de René Magritte
André Ricardo Aguiar

4 comentários:

Anônimo disse...

Vou contar uma coisa. Pegar um tema como o do espelho e virá-lo pelo avesso não é brincadeira para qualquer vidraceiro. Precisa saber dosar a curvatura. Do cristal ou da coluna? Seja do que for, você fez uma curva perfeita aqui. Dos materiais e dos sentidos.

Anônimo disse...

opa, que imagem interessante essa do espelho. coisa invertida. mundo por trás. deixa quieto. rs beijo

Anônimo disse...

Não é de Borges a idéia de que os espelhos constroem o infinito? Grande abraço!

Anônimo disse...

Gostei da idéia, das palavras empregadas, do ritmo. Enfim, gostei um bocado. Além do mais: terá razão o leitor Carlos Dowling? Um abraço.