segunda-feira, dezembro 18, 2006

Favela Futebol Clube

Toca aqui, dribla acolá, esses moleques descem o morro. A origem da pelada ninguém sabe: a bola, meio remendada às pressas. Alguns PMs na contramão, mas os meninos não se fazem de rogados. Anjos sem chuteiras, a bola ainda chega a bater num policial. O fardado ri, uma mão no 38, outra num meneio que devolve a bola. O jogo desce o morro, a bola evita uma vidraça, e nesse bem bolado sistema, chegam a um mirante. Do outro lado o morro é fendido por uma grota e só um ronaldinho bem bombado daria um chute, um pé de canhão para alcançar a laje de uma casa onde espera o outro time. A movimentação na pequena área, um deles marca bem a posição, finta e dribla, põe a mira no gatilho dos olhos, toma espaço e solta a canela: a bola descreve um arco – a tensão é de um pênalti – e um que estica os braços e recebe o bolaço no peito. Os dois lados comemoram com tiros. Estamos quites, parecem dizer – a bola é rasgada e do seu ventre saem saquinhos do mais puro pó – o jogo empatado, uma bela partida, 1 x 1.

André Ricardo Aguiar

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Salão de beleza

- Faz minhas unhas?
A moça sentou-se no banquinho, pegou os dedos da cliente e botou, na ponta de cada um, uma unha.
- Faz meu cabelo?
O rapaz colou, fio por fio, uma longa cabeleira sobre seu crânio.
- Faz minha sobrancelha?
Veio outra moça e plantou-lhe um belo par de sobrancelhas negas sobre a superfície rigorosamente plana do rosto.
- Faz meus olhos?
Fez-se silêncio no salão.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Moonlight Serenate

Lua morta*

A noite é fria e carregamos os instrumentos. Bandolim, cavaquinho, violão, uma flauta. Nós somos um grupo coeso e vivemos conforme a música. Aí pintou um serviço, família de conceito, menina romântica, bairro distante. Então conversamos, acertamos a música, que tipo de andamento e tal e torcemos, torcemos muito por uma noite de lua morta, baça, escondida.

Rua torta*

O caminho é um samba de crioulo doido. É um bairro de classe média baixa, cheio de ruas tortas, ladeiras, um ou outro trecho mal formado. O rapaz do violão diz, meio que brincando, que o bairro é assombrado pelos fantasmas de antigos traficantes. Não brinca, cara. Aí dobramos à esquerda e na última esquina, afinamos os instrumentos: estilete, alicate, chave inglesa.

Tua porta*

Quando chegamos defronte a casa, tomamos o cuidado de uma inspeção ampla. Nenhuma alma na rua. Começamos baixinho com uns dedilhados. Quando, em crescendo, espero lascar com meu vozeirão, quando as primeiras pupilas das janelas acendem, eu dispenso um e outro, que dão a volta na casa. O combinado – o código musical – será tocado no momento certo. Lá estão o pai, a mãe, a filha e a empregada pendurados nas janelas. Eles riem embevecidos da serenata. Aumentamos o tom, quando sentimos, pelo compasso, que o serviço está para ser feito. Não se ouve nada, não há latidos de cães, e nos fundos da casa, a música chega no calculado refrão, indicando que podem dar conta, fazer a feira, raspar o tacho. Depois, recolhemos os instrumentos e nem sequer aceitamos as gorjetas. Saímos de fininho.

Contamos o produto, dividimos com justeza e olhamos pros lados, meio temerosos dos assaltos. Descemos o caminho de volta com a sensação dupla: dançamos conforme a música e eles dançam juntos.

*(Conto a partir do poema de Cassiano Ricardo, Serenata Sintética)

André Ricardo Aguiar