segunda-feira, agosto 14, 2006

Composição infantil

Eu capturava réstias de sol com vários espelhinhos; consegui guardar uma delas, sem o consentimento da lua, altas horas da noite. Em compensação, na manhã seguinte, vi uma réstia de sombra, de sol apagado.

Eu inventava doenças imaginárias. Uma vez peguei febre pelo cabelo. Causava arrepio e palavras que saíam de mim que ninguém entendia. Na verdade, causavam Intendimento, com i mesmo. De outra vez, fui buscar num quarto lotado de fotos antigas uma doença chamada Mnemonia. Lembrava de coisas da minha vida que não tiveram tempo de acontecer, mas que aconteceriam se eu tivesse mais tempo. Com doze anos, lembrei o suficiente para criar a história de três cidades, incluindo moradores, genealogia, etc. Mas a doença que mais me derrubou foi susto familiaris. Eu me contagiava de tios, primas, avós, tudo dos séculos de trás e em cada tosse ou espirro me nasciam mais parentescos.

As senhoras, ao fim da tarde, varriam folhas e formigueiros. Os moços varriam conversas e causos. O rio varria a água. A tarde varria o sol. Só eu vivia nos invernos da casa, contando quantas formigas, quantas gotas d’água fugiam para o indefinido. Minhas ocupações do ócio levavam horas. Pensava em sofás que sofriam de asma, almas do outro mundo dentro da cisterna, punhos de redes que esmurravam paredes.

Penso que adoeci de vida, quando nasci.*

André Ricardo Aguiar

* Paráfrase de um verso de Marin Sorescu.

7 comentários:

Anônimo disse...

Mais do que uma "composição infantil", ou exatamente em função disso, meu caro, trata-se de um texto que faz do sonho e do imprevisível, com suas pequenas sutilezas surreais, o seu impulso criador. Um abraço.

Anônimo disse...

É da matéria que trata essa composição que é feita a vida. Intensamente silenciosa mas tão expressiva em suas poucas palavras.

Ricardo Mainieri disse...

André Ricardo :

Olá meu xará nordestino!
Bela prosa nos tons de um realismo fantástico, bem particular.
Um exorcismo de nossas zonas de sombra, sempre vale a pena.

Abração.

Ricardo Mainieri

Anônimo disse...

Nossa. excelente texto, exatamente daquele tipo pelo qual eu me encanto. Adoro lembrar das coisas, especialmente das coisas boas, e pensando bem, há tanto pra se lembrar...
Um grande abraço

Anônimo disse...

adorável! os olhos de cá sorriram.

Anônimo disse...

Agora me diga: como é que vc consegue imaginar ( e escrever) tudo isso?
Perfito, André. E belíssimo.
Beijo grande daqui.

Anônimo disse...

Ai, André, cuidado! que meu coraçãozinho ficou muito mais sensivel depois do enfarto e não sei se poderá aguentar doses muito extraordinarias de poesia. Essa já foi demais! Beijo