segunda-feira, outubro 02, 2006

Espelhos e olhares

A primeira vez que a vi ela não me olhou. Mas me causou profunda impressão sua cabeleira basta de serpentes. Eu era um simples advogado e fui contratado para uma questão simples. Essa primeira visita, intermediada por sua governanta numa impressionante mansão, foi marcante. Medusa era uma mulher voluptuosa, de voz doce, porém enérgica. A questão nem vem ao caso. Mas o espelhinho bem posicionado na mesa foi o nosso primeiro flerte. Outros viriam.

Passei a visitá-la constantemente. Com um pouco mais de dois ou três meses, admitimos uma paixão avassaladora. Ato contínuo, fui de malas prontas para sua casa. O casamento foi uma cerimônia simples e preferi estar de olhos vendados para o beijo de núpcias.

O casamento parecia ir de bem a melhor. Graças a sua fortuna, deixei de exercer minha profissão e passei a dedicar-me a futilidades culturais. Não recebia os amigos porque minha mulher, um dia, mostrou no salão norte, o efeito de tentar fazer amizades: uma imensa coleção de estátuas lívidas, aterrorizadas, mudas.

Depois de uma longa conversa com os olhos baixos, pedi a Medusa que aumentasse o arsenal de espelhos na nossa casa. Custava-me o meu desejo, o meu amor, não ter sequer a hombridade de encarar minha esposa nas questões mais banais. Já tinha vencido a repulsa inicial de passar a mão na sua cabeleira – onde, felizmente, suas cobrinhas foram esterilizadas nos venenos e levemente picavam meus dedos em dias de maior excitação. Só faltava o contato fundamental dos nossos olhares. O que era simples: uma coleção de espelhos de variados tamanhos, posicionados em todos os cantos da mansão. Não esqueci de incluir na lista, com certo gosto malicioso, o espelho oval para o nosso quarto.

Medusa tinha a alma melancólica. Também era insegura. Mas gostava de mim. E não se perdoaria se um acidente me petrificasse. Concordou em parte, embora não confiasse em espelhos. A duplicação de uma coisa tão relativa quanto à realidade não a deixava menos mitológica. Temia pelo pior.

Os espelhos foram pendurados. Eu mesmo adquiri um espelhinho de bolso e, em momentos de intimidade ou quando precisava dizer uma palavra de carinho, gostava de olhar no reflexo. Cada dia me apaixonava mais. E em cada vez, minha Medusa encontrava-se mais e mais angustiada. O ato de mirar um espelho, seja em qualquer canto da casa, parecia superficial. Como uma amortização da repulsa. Em momentos de maior desespero, Medusa movia seus olhos rapidamente pelo meu rosto. Dispensava os espelhos e eu aceitava uma piscadela, ainda que temerária. O resultado afetou minha pele: uma leve casca de mármore, removida com um pequeno pente.

Aumentei a quantidade de espelhos. A casa toda parecia uma dessas construções de ilusão de ótica. Isolamos-nos do mundo. É triste dizer, mas o casamento estava em crise. Mas passeávamos pelo jardim e deixamos aos cuidados de nossa descendência – sim, tivemos filhos – a manutenção da mansão. E distraídos, ao fazer um balanço do casamento, decidi que, mesmo não conhecendo minha mulher nos seus secretos sentimentos, por achar que só no olhar desvendaria certo código, juraria eterno amor. E como havia esquecido o espelhinho – ou talvez fiz de propósito – olhei nos seus olhos. Ela tremia de emoção, quase não sustentando o olhar. Amei-a até aquele momento. Depois me afastei, deixando uma bela estátua no banco do jardim. Meu coração tornou-se pedra.

André Ricardo Aguiar

2 comentários:

Anônimo disse...

Sem palavras ... Absolutamente lindo!

Ana__Lia disse...

Que barato, André! Mixagens da mitologia grega...