segunda-feira, outubro 09, 2006

Surras

Na casa de meus pais a surra cantava quase todo dia. Como tudo era apertado, a pancadaria significava mais alguma coisa quebrada além dos ossos. Eu nem sentia tanta dor assim: pródigo em ser o escolhido, tinha então um jeito de evitar as partes ou apelava para o que eu chamava de a fuga do rato, me esgueirando do cinto ou do chinelo e indo parar em alguma grande gaveta (enquanto, abafados, os gemidos de cumplicidade mórbida dos meus irmãos indicavam novas possibilidades de surra à mesma noite).

O gosto pela violência sempre foi uma constante aqui. Meu pai chegava do trabalho já puto com alguma coisa e pouco antes de afundar a cara num pântano de sopa, praticava alguma pancadaria, indo, numa escala evolutiva, desde o cão até o nosso vovozinho (velho, mas não fraco, frequentava a academia e sabia se defender com a bengala). Tínhamos o chamado quarto da gravidade: um minúsculo cubículo onde uma boa sova era aplicada. Aliás, uma arte da surra se formava ali: depois de alguns minutos, o carrasco e a vítima literalmente perdiam o chão e planavam, entre respingos de suor e sangue.

A convivência estava ficando insuportável. Ainda que fôssemos uma família de sangue quente, tínhamos um forte sentimento de ligação, uma fraternidade que ultrapassava o limite daquelas paredes sujas e amassadas. Vovô aumentava a frequência dos treinos de halterofilismo e remoia nos bolsos sabe-se lá que perdido estilete. Apenas uma vez, quando perdemos o nosso irmão caçula numa briga de gangues no quintal (acho que titio estava do lado oposto...) é que ficamos um pouco estremecidos e volta e meia o jantar ficava com um travo na garganta de alguém e mamãe rompeu a chorar uma ou outra vez, a arma carregada entre os vidros de tempero.

A violência não leva a nada, disse eu sossegadamente. Mamãe estava só e a tarde era uma das mais calmas, só com o eco da louça quebrada em próxima vizinhança. Minha mãe tomou um susto, tirou o bebê que mordia o seu peito e o pôs no cercado, puxou delicadamente a orelha defeituosa que eu tinha e disse, Olha aqui, nunca mais repita isso - e com o alicate que tinha por perto, arrancou-me uma unha como lição. Nunca mais me esqueci a crueldade da minha frase. Nem sei se minha mãe perdoou aquilo. Ou se contou a meu pai; ou se propôs a dar mais lições. Por via das dúvidas, hoje fico mais tempo no quarto, à espreita. E meu irmão me vendeu uma arma, ainda que por um preço exorbitante.

A gente nunca sabe a família que tem.

André Ricardo Aguiar

Um comentário:

edeugalho disse...

Poxa, e eu que achava que varadas de amoreira eram as que mais doíam.

Isso é uma crônica fictícia ou real?

É, ainda bem que nunca apanhei desse jeito.

Tenho dito