
Contra minha vontade, e desejando sempre a oportunidade de enfiar um gato aqui em casa, fui aturando a avezinha amarela. Estabeleci o fingimento de dar alpistes sem dar verdadeiramente: que morresse de fome ou de colapso nervoso. Vi que me encarava e no fundo de suas pupilas fervia o caldinho de seu ódio. Eu não deixava por menos. À parte o mutismo dos meus dias, de vez em quanto eu mesmo assoviava, por pirraça, uma ária qualquer, um hino de futebol, um samba. E a avezinha, muda, como se empalhada, um bico de indignação.
Quis um gato, e ainda mais: queria deixar o meu carinho para algo, um contraponto para a superstição de possuir uma ave idiota e estressada. Um dia apareceu-me uma vendedora de enciclopédias e contou, no calor da conversa, que possuía um filhote, já caçador de ratos e todo independente. No dia seguinte, apresentei o gato ao canário. Rindo-me por dentro, pareceu-me ver no contato um certo clima de arena romana.
Não me lembro se fiz de propósito ou se foi arroubo besta de antipatia. Sei que, por decisão higiênica, quis limpar a gaiola. Meti o canário numa caixa de papelão onde depositei numa mesinha, lá no quintal. Terminado o serviço, já no banho me dei conta: imaginava que por estas horas o gato já teria papado o passarinho. Corri do banheiro (nessas alturas odiava menos o canário) e – susto – vi sinais de arrombamento no caixote. O canário jazia extenuado, com restos de fúria, manchas de sangue no bico e uma nuvem de pelos ao redor. Transplantei-o para a gaiola. Foi encontrar o felino horas depois, tremido e roto entre umas malas e entulhos debaixo de um fogão à lenha aposentado. Era pouco menos que um gato, perdido o olho.
*Tela de Paul Klee
André Ricardo Aguiar
2 comentários:
A crueldade com um toque de finesse... texto de visão irreverente...parabéns...
Muito bom, André, haja imaginação! E este também faz parte "daqueles"... Um beijo. MVal
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