quinta-feira, outubro 05, 2006

Solo para fundo de mar

Para quem escuta, o som de um tapa na cara se limita a uma nota. Semibreve. Ninguém suspeita da polifonia corporal que vibra sem partitura ou controle.
Muda como eu. Como agora.
Posso escutar o som do sangue arranhando veias, o estrondo da adrenalina disparando seus processos, a mudança de cor da pele.
Só o que não se ouve é minha voz.
Desde que ele começou a falar, me deixei despencar em um abismo líquido e interminável. Sou um peixe, só escuto o que dizem minhas células.
Ele fala há muitos anos, mas sua voz vem de longe, de outro além, um cosmo inteiro serve de barreira entre meus ouvidos e a torrente de palavras que ele despeja. Grita que não é um fracassado, urra planos mirabolantes, promete cornucópias.
Me limito a olhar sua barba por fazer, sua cara de sono, a raiva que o envolve como um casaco estragado, o calor de seus caninos. Não preciso fechar os ouvidos, não se trata de uma sereia, é só um touro castrado.
Você vem comigo, vamos vender tudo, vamos começar uma vida nova bem longe daqui, ele alucina. E eu só olho, uma escama afiada em cada pupila, no meu dinheiro ninguém põe a mão. Foi arrancado de cada minuto de trabalho meu enquanto ele sonhava uma vida que não pode mais existir no futuro, porque já se acabou.
Ficar em silêncio foi uma conquista, urdida com capricho ao longo de muitos anos. No começo, eu aconselhava. Mais tarde, argumentava. Uns anos mais e respondia ofensas com outras ofensas. Até o dia em que percebi que não existia palavra mágica, nem prece, nem poema, nem insulto capaz de produzir respostas. Estava diante de uma solidão absoluta, de um código desprovido de senhas, de um fim fechado dentro do fim: como um abismo seco.
Então, me calei e, pela primeira vez, meu silêncio foi cortado pelo som de uma bofetada. Só abri a boca para sorrir.
Foi quando senti que tinha os dentes gelados.

Rosa Amanda Strausz

3 comentários:

Anônimo disse...

Texto de dolorida verdade, apoiado num trabalho de linguagem não menos lírica que um bom poema. Gostei demais!

Anônimo disse...

Uau! Isso é uma bofetada em palavras da melhor qualidade. beijos, querida

Anônimo disse...

Perfeito que dói! Beijo. MValéria