quarta-feira, outubro 11, 2006

Noiva no sinal vermelho

Mas não tem juízo, essa moça. Tão bonita no seu carro. Sei de tudo. Olho tudo daqui da minha janela. Tenho visão privilegiada do sinal que obriga os carros a pararem por tanto tempo. Eles, os motoristas, amaldiçoam o cruzamento. Eu, não. Gosto dele. Lento, me dá tempo de espiar por dentro dos carros, ver as pessoas, saber quem passa aqui todo dia e quem está só de passagem.
Essa moça, a sem-juízo, vem todo dia, menos sábado e domingo. À mesma hora. Oito e meia da manhã, pouco mais pouco menos, chega o carrinho dela. Deve ir para o trabalho. É azul, veja só que cor mais sem graça para um carro. Tem jeito de ser pintado. Tem jeito de ser velho. Mas ela é nova, a moça. E bonitinha mesmo.

Chega com os vidros fechados. Mas não tem a menor pinta de ter ar refrigerado ali dentro, não. Em dia de muito calor, ela deixa uma frestinha em cima. E pára no sinal com um ar já meio cansado, meio impaciente. Oito da manhã e já impaciente.
Acho que ela vai para o trabalho. E não gosta do trabalho. Chega com uma cara meio sofrida, como se tivesse deixado em casa alguma coisa muito importante, muito boa, que não merecia ser trocada pelo emprego.

Mas não tem juízo. Sei, eu sei de tudo. Sei até que ela tem bom coração. Não fosse por isso, o que explicaria todo dia ela abrir os vidros para o sujeito que vende bala no sinal?
Esse sujeito está aqui faz bem uns três anos. Também chega todo dia muito cedo e traz uma caixinha de pastilhas de hortelã. O porteiro do prédio diz que ele é velho de rua. Diz que ficava antes na esquina da Barão do Flamengo com Praia. Depois, foi para a São Clemente.

É danado o sujeito. Sabe onde o trânsito engarrafa. O porteiro diz também que ele já foi muito engraçado, que fazia todo mundo rir e comprar muita pastilha. Conta que ele vende bala no sinal desde menino. Imagine, esse sujeito parece mais velho do que eu.
Não vejo a menor graça nele. Aliás, acho o homem perigoso. De tão magro, os olhos pulam da cara preta e barbada. Não faz força para manter os olhos abertos, não. Estão sempre meio fechados, meio olhando para todos os lados. E explora os motoristas. Nunca vi uma pastilha de hortelã tão cara. Meu deus do céu! Só mesmo intimidados, os de-carro pagam um real inteiro por uma pastilha que custa dez centavos em qualquer botequim.

Todo mundo fecha o vidro para ele. Todo mundo tem medo. Menos a moça bonita e sem juízo. Ela abre. Abre o vidro e compra uma montanha de pastilhas. Todo dia.
O espertinho já conhece o carro. É só ver a lataria azul aparecendo que corre na direção da moça, gritando que ela é noiva dele, que ele vai casar com ela, que ela é linda, vê se pode uma coisa dessas. E a sem-juízo dá todo dia um real, às vezes cinco reais quando ele diz que está fazendo aniversário. Esse sujeito diz que faz aniversário bem umas dez vezes por ano. Mas ela faz que não percebe e compra cinco reais de pastilha. Ele fica gritando da calçada quando ela parte. Grita que ela é linda. Que vai casar com ela. Ele tem o olho doido e só eu sei disso.

Semana passada, ela chegou mais animadinha. Ainda tinha no rosto uns restos de sorriso, daqui eu podia ver. E, quando parou no sinal, deu pra ver direitinho um anel bem grande, lindo, reluzente, uma estrela no dedo.
O maluco das pastilhas também viu. Perguntou do anel novo. Ela respondeu rindo, o vidro todo arriado, que tinha ficado noiva de um homem rico, ia até mudar de carro. Que o moço do sinal prestasse atenção. Dia desses, ela ia chegar num carrão. Mas ia abrir o vidro e comprar pastilha, ia sim.
-- Mas você é minha noiva – gritou o das pastilhas, enquanto o carro sumia no sinal verde.

Ela não viu. Mas eu, sim. Eu vejo tudo.
Eu vi o brilho da perda nos olhos dele. E ouvi os gritos que ele deu o dia inteiro. Você é minha noiva, ela berrava para todas as mulheres que paravam no sinal. Elas, que têm juízo, fechavam bem os vidros e fingiam que não tinha nada demais acontecendo do lado de fora.
Estou aqui, da minha janela, rezando para que a moça bonita tome juízo e mude de caminho.
Esse homem já perdeu demais.
E ela ainda nem começou a compreender o brilho que acende as manhãs de cada um de nós.

Rosa Amanda Strausz

3 comentários:

loki, disse...

Belo texto. bão o blog também.

Volto mais vezes.

abs.

Anônimo disse...

Emocionante o seu texto! beijo da Clarice.

Anônimo disse...

Que conto incrível, Rosa. Emocionante e lindo.
Beijo.