segunda-feira, setembro 18, 2006

A.p.a.r.t.a.m.e.n.t.o

Acordou com a sensação incômoda de estar sobrando no apartamento. Os músculos doíam, respirava com dificuldade. Abriu lentamente os olhos, fez um gesto de levar a mão ao rosto, mas o braço nem sequer se mexeu: estava entalado no corredor, os dedos roçando a minúscula porta do seu quarto. Notou que o mal-estar era causado pela posição (de cócoras) e por se encontrar totalmente envolto pelas paredes, teto e chão da sala, as costas voltadas para a varanda do 8º andar.

Qualquer movimento mínimo, ir para frente, recuar, encolher os braços, uma tentativa que se anulava com barulho de móveis esmagados. O apartamento estava vazio? Onde se enfiara a mulher? E a governanta? Estariam do mesmo tamanho? Veio um arrepio de pânico na nuca. Lembrou apenas que tinha dormido no sofá – esmagado pelo dedão – com a tv de plasma ligada. Ali estava a tv, parecendo um desses brinquedos japoneses de ávidos miniaturistas. Quando tentou tocar com o dedo mindinho, um barulho de cream-craker: a tela em cacarecos.

Sentiu todas as suas funções vitais, a respiração pausada, o coração acelerado. Começava a duvidar se aquilo ali era um apartamento, se não era uma brincadeira de amigos, uma maquete tecnológica. Bastaria arquear os ombros e a tampa sairia dos encaixes e ele apareceria no meio de rostos conhecidos ou talvez num show de mágica, sabe-se lá. Mas constatou, assustado, que o teto ruíra um pouco acima de sua têmpora. E, susto, a outra mão enfiada até o fundo da cozinha, sentia a vibração inorgânica de uma máquina de lavar.

Alias, bastava respirar um pouco mais forte: o deslocamento de ar já derrubou alguns quadros na parede. Ele não teve dúvidas. Estava numa reprodução exata do seu apartamento, um brinquedo de última geração com capacidade para simular o mais extenso aparato de uma realidade. E já estava se cansando da brincadeira e prestes a tomar uma atitude mais drástica (suas costas doíam mais e mais) quando a porta da frente fez um barulho e a maçaneta começou a girar.

Agora sim, ele veria mais uma função, talvez movida à pilha.

Em vez disso, entrou um dedo: fez uma pequena inspeção às cegas, encontrou uma série de botões e foi desligando pouco a pouco, a luz matinal, a corrente de ar, as vibrações do apartamento, o sistema de travas, o alarme, além da dor nas costas, a sensação de claustrofobia e – último impulso do pânico – sua consciência.

Room_sea, Edward Hooper
André Ricardo Aguiar

5 comentários:

Anônimo disse...

Novamente um texto muito belo, intrigante, misterioso e com as medidas exatas da angústia e solidão do seu personagem - o que sempre combina com a angustiada solidão das telas de Hopper.

Anônimo disse...

Um escândalo de bom! Uma alice sem futuro, sem coelho e sem rainha. Prisioneiros sem fôlego ficamos nós, seus leitores, para sempre presos na beleza do seu texto. beijos.

Anônimo disse...

Pra mim, se situa em algum lugar entre Gulliver e aquele prédio de Quero ser John Malkovich.E á vizinho da casa do seu pescador, que tanto amo. Como amo esse tb.
Um beijo.

Márcia Maia disse...

Ei, vá no mudança ou só irei no engrengem, viu? hahahahaha
beijoutro.

Waldir Pedrosa Amorim disse...

Uma beleza de contos.Como sempre! Parabéns é pouco.
Abraço, Waldir Pedrosa Amorim