quinta-feira, setembro 21, 2006

O muro próprio

Denise comprou a casa. Perto demais da favela, mas sua. E tem quintal para os meninos. Falta só fazer o muro.
Ainda está arrumando a mudança quando vê o garoto, pouco maior do que os seus, com o revólver pendurado na cintura. Na frente da casa. Da casa sem o muro.

Chove forte. Ele tira a camisa e embrulha um pacote com ela. Fica com as costelas soltas no frio da tarde de julho. Tão magrinho, encolhido sob a chuva, sentado no chão molhado.

Faz o jantar e não agüenta. Chama o menino para comer um prato de feijão quente. Não posso sair daqui, tia. Então, ela faz o prato e leva para a rua. Ele conta que se chama Capeta e é olheiro do morro. Não pode arredar pé dali, tem que vigiar o caminho e disparar os fogos se a polícia aparecer ali embaixo, ali na curva, está vendo, tia? O problema é a chuva, que está molhando os fogos, guardados junto com o revólver dentro da camiseta. Tia, guarda pra mim?

Denise não pode, não quer encrenca, tem filho pequeno e um medo enorme. Entra em casa e vê quando, mais tarde, chega uma mulher envelhecida, muito provavelmente a mãe do Capeta. E pede tanto que ele vá para casa e ele só faz que não com a cabeça. Que idéia a da mãe, largar o ponto, não é homem disso.

Já está anoitecendo quando Denise fecha a janela e deixa o menino encolhido na chuva, a poucos metros da mãe, que também sentou no chão e vela a vigília do filho.

Amanhã vai procurar quem levante o muro. Mesmo sabendo que a tosse do Capeta vai atravessar todos os tijolos e se alojar no fundo do seu ouvido feito um tiro.

Originalmente publicado in Contos Fraternos, organizado por Lívia Garcia-Roza, Ed. Record

Rosa Amanda Strausz

4 comentários:

Anônimo disse...

Um conto que já conhecia e que sempre me impressionou pela maneira como se aborda um pequeno universo brasileiro e o transcende, imbricando lirismo e denúncia social sem forçar uma mensagem moralista. Considero uma pequena jóia de sua produção, uma fábula marcante. Beijos!

Anônimo disse...

Real como a vida que se anuncia quase sempre, sem saída.

Um beijo.

Anônimo disse...

Tudo é ficção, tudo é realidade. Assim, nos confins das palavras: escrita/real/social/escrita. Um beijo.

Anônimo disse...

Olá, Rosa!!
De quando em vez apareço por aqui, sabia? Adoro vossos continhos... esse mesmo, muito denso. Muitos beijos e saudades do Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Se der vontade, dê uma visitada no meu blog: www.paraibacana.blogspot.com
Ana Lia