segunda-feira, julho 17, 2006

A pescaria

Como poucos, cultivava a solidão. Quando, findo o trabalho na fábrica, rumava ao ponto de ônibus. Ou mesmo seguindo as anáguas da lua. Exausto, ancorava o dia e ligava a tv.

Uma noite encontrou o Pescador sentado na beira do sofá. Vara de pesca em punho, jogava a linha no fundo da sala e, intruso, esperava. Ficou sem saber o que dizer. Não conseguiria removê-lo do sofá. Com o passar dos dias, acabou aceitando a convivência. Mas evitava-o. Pôs a tv no quarto, em respeito ao silêncio do Pescador. E lia Hemingway na cozinha.

Era difícil suportar aquele código de espera, a economia de movimentos, o respirar matemático do sujeito. Além disso, aqui e acolá, surpreendia a linha costurada à sombra dos móveis, a tecer emboscadas. De uma feita, tomou do anzol sua meia de lã. Outro instante, feriu o tornozelo ao sair do banheiro. O Pescador apenas desenrolava ou enrolava o molinete, trepado no sofá, como se fosse um barco imóvel. Perscrutando os cômodos da casa.

Um dia o homem trouxe uns bolinhos de bacalhau.
Cuidando não se enredar na linha espalhada ali, foi desembrulhando a gula. Na cozinha, longe do olhar alheio, mordeu o primeiro pedaço. Mas quando sentiu um forte repuxo, debateu-se, o gosto metálico do anzol no céu da boca.

Em vão. Fisgado até a sala, arrastado pelo chão, foi pego com mãos fortes e rudes pelo Pescador, que o colocou no cesto, pôs fim à pescaria e sumiu.


André Ricardo Aguiar
Ilustr. A. Jasinski

6 comentários:

Anônimo disse...

Conto perfeito pra animar a gente num começo de semana chuvoso... dá pra ficar feliz e aliviada de que o pescador ainda não tenha aparecido na minha casa! Imaginação, imaginação, imaginação é o que nos salva e salvará!

Anônimo disse...

O conto chega de mansinho, com cheiro de mar, e sem mais nem menos fisga a gente pelo pé e joga no mais puro horror. E ainda com a tirada humorística do bolinho de bacalhau! Em poucas linhas, emociona, faz rir e assusta.

Anônimo disse...

Ainda não li. Mas amanhã vou! Muitas felicidades, cara, nesta nova etapa. abração!

Anônimo disse...

que feliz surpresa, ler seu conto!

seus escritos não param de crescer!

continuarei voltando

abs

Carolina Queiroz disse...

Silidão submersa é baum
assim como café
quentinho
com bolo de fubá

Anônimo disse...

Genial, hehe. Meus parabéns, soa como monotonia essa coisa de pesca. Parabéns!