segunda-feira, julho 24, 2006

Casa de bonecas

Hermes tenta não contar para ninguém. Mas na sua casa tem uma casa de bonecas no porão. Que devia ser da bisavó, acha. Entre quinquilharias, lá está. É idêntica a uma casa em estilo vitoriano, o teto é uma tampa que se suspende, dá para espiar o interior e ver com orgulho o trabalho artesanal: as divisórias, os móveis liliputianos do quarto, um corredor, outro quarto, uma escadaria que leva ao térreo. Um mimo. Dá para olhar, agachado, todas as janelas, ver como o carpinteiro trabalhou as esquadrias, aqui e ali uns encaixes na parede imitando um quadro, totalmente kitsch. Enfim, entre teias de aranha, caixotes e crise de asma, uma vez ou outra ele vai lá espiar. Só que descobriu que não estava só.

Numa noite, pouco antes de ir dormir, antes de cerrar a porta do porão. Desceu novamente a escadaria e agachou-se defronte à casa de bonecas. Havia uma diminuta luz vagamente iluminando o quarto: era o abajur de plástico. Seguindo o rastro da luz, que lambia a cama de papelão, via-se os contornos de uma minúscula mulher (de plástico?) levemente ressonando. No banheiro, som de água, pia aberta, barulho de barbeador. Hermes, incrédulo, baixou a tampa do teto, esfregou os olhos. Guardar segredo. Não contar para ninguém. Uma casa de bonecas no porão, herança da bisavó. Mas achou que era demais, um sonho mau e cínico. Resolveu dar um tempo, parar com os comprimidos. Fruto de uma coleção de insônias. Hermes voltou à faculdade, para as aulas de lógica.

Uma semana depois, desceu ao porão. Parecia mais fundo, ele mesmo uma caixa de sapatos guardando a memória familiar. Ou onírica. Lá estava, meio azulada, a casa de bonecas. Um brinquedo inocente. Até certo ponto, não fosse o homenzinho encarrapitado no teto, fazendo reparos. Como se algum leviano tivesse batido com força. Parecia irritado. Depois desceu por uma escadinha e sumiu pelo flanco da casa. Hermes não chegou mais perto nesse dia. Por garantia, passou a chave na porta.

No dia seguinte, munido de lupa, a respiração contida. E por uma abertura – já não arriscava a dizer janela – olhou para o casal, o boneco virado para o fogo da lareira, um jornal aberto na cara, e a boneca tricotando um casaco. Parecia irritada. Parecia falar, sem meias palavras, sem conter o fôlego, o mover de lábios, dizendo palavras duras. Que o mundo não era brincadeira. E que existia sim, dentro da normalidade, a brecha. E dentro da brecha, a mão gigantesca – como um terrível deus – de um destino vigilante, que um dia (e disse isso para o marido, tricotando mais rápido, iracunda) ia se meter onde não era chamada.


André Ricardo Aguiar

6 comentários:

Anônimo disse...

Quero só ver o fôlego de vocês dois pra sustentar a bola nessa altura!

Anônimo disse...

André:

Eu adooooooooooro esse conto. e já o 'contei' para um monte de gente que eu conheço. A propósito:tenho uma idéia ótima pra vc escrever um novo texto. Liga depois pra mim, pois tenho certeza que vc vai delirar com o tema.

Beijos,
Angel Mix

Anônimo disse...

Na linha fina que separa o encantamento do terror - ou no limite entre o fascínio e o medo. Um toque de humor cruel, um tanto de singeleza, e aí temos um grande pequeno conto.

Anônimo disse...

Nossa, muitíssimo interessante! Trata de várias coisas, permite uma porção de interpretações... Gostei especialmente do brincar de Deus. Parabéns!

Abraço

Anônimo disse...

"Olha que continho mais lindo, mais cheio de graça..." rs. É um de seus contos mais cheios de encanto, impossível ler e não ficar enternecida. Grande beijo!!!

Anônimo disse...

E pode?! Essas imagens não são mesmo deste mundo...pertencem ao reino do surreal, sensível, à ordem do mágico e do poético.