Numa noite, pouco antes de ir dormir, antes de cerrar a porta do porão. Desceu novamente a escadaria e agachou-se defronte à casa de bonecas. Havia uma diminuta luz vagamente iluminando o quarto: era o abajur de plástico. Seguindo o rastro da luz, que lambia a cama de papelão, via-se os contornos de uma minúscula mulher (de plástico?) levemente ressonando. No banheiro, som de água, pia aberta, barulho de barbeador. Hermes, incrédulo, baixou a tampa do teto, esfregou os olhos. Guardar segredo. Não contar para ninguém. Uma casa de bonecas no porão, herança da bisavó. Mas achou que era demais, um sonho mau e cínico. Resolveu dar um tempo, parar com os comprimidos. Fruto de uma coleção de insônias. Hermes voltou à faculdade, para as aulas de lógica.
Uma semana depois, desceu ao porão. Parecia mais fundo, ele mesmo uma caixa de sapatos guardando a memória familiar. Ou onírica. Lá estava, meio azulada, a casa de bonecas. Um brinquedo inocente. Até certo ponto, não fosse o homenzinho encarrapitado no teto, fazendo reparos. Como se algum leviano tivesse batido com força. Parecia irritado. Depois desceu por uma escadinha e sumiu pelo flanco da casa. Hermes não chegou mais perto nesse dia. Por garantia, passou a chave na porta.
No dia seguinte, munido de lupa, a respiração contida. E por uma abertura – já não arriscava a dizer janela – olhou para o casal, o boneco virado para o fogo da lareira, um jornal aberto na cara, e a boneca tricotando um casaco. Parecia irritada. Parecia falar, sem meias palavras, sem conter o fôlego, o mover de lábios, dizendo palavras duras. Que o mundo não era brincadeira. E que existia sim, dentro da normalidade, a brecha. E dentro da brecha, a mão gigantesca – como um terrível deus – de um destino vigilante, que um dia (e disse isso para o marido, tricotando mais rápido, iracunda) ia se meter onde não era chamada.
André Ricardo Aguiar
6 comentários:
Quero só ver o fôlego de vocês dois pra sustentar a bola nessa altura!
André:
Eu adooooooooooro esse conto. e já o 'contei' para um monte de gente que eu conheço. A propósito:tenho uma idéia ótima pra vc escrever um novo texto. Liga depois pra mim, pois tenho certeza que vc vai delirar com o tema.
Beijos,
Angel Mix
Na linha fina que separa o encantamento do terror - ou no limite entre o fascínio e o medo. Um toque de humor cruel, um tanto de singeleza, e aí temos um grande pequeno conto.
Nossa, muitíssimo interessante! Trata de várias coisas, permite uma porção de interpretações... Gostei especialmente do brincar de Deus. Parabéns!
Abraço
"Olha que continho mais lindo, mais cheio de graça..." rs. É um de seus contos mais cheios de encanto, impossível ler e não ficar enternecida. Grande beijo!!!
E pode?! Essas imagens não são mesmo deste mundo...pertencem ao reino do surreal, sensível, à ordem do mágico e do poético.
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