Alimento-me das frutas podres que caem ocasionalmente por obra da ironia e mato minha sede com alguma chuva que sempre se avizinha. Tão só, não tenho ganas de voltar pelo túnel e morrer contrabandeando pequenas liberdades. De vez em quando, quando tenho forças, escalo o poço, mas invariavelmente caio com estrépito no lençol de folhas podres, urina e terra de ninguém. Assim, passo a maior parte do tempo dormindo com minhas feridas, esperando, respectivamente, que morra algo de mim nessa semana feita de domingos, esticada num calendário incerto em que minha existência fica mais ou menos rente à figura de Jó, sem nada, mas um nada mais patético, porque aqui neste poço nem Deus se dispôs a baixar e amaldiçoar a minha vida.
Ouço vez ou outra, barulho de terra caindo do túnel, onde mais uma vez apagam o registro. Ao fim do interminável domingo alcanço a borda do poço, já sem forças, e vejo, ainda com o fôlego pendurado, o mesmo pátio da cadeia, a sombra da nuvem que cobre a guarita do guarda, o fio de alta tensão que alimenta o holofote e a árvore doente e cativa. Não termino o pensamento, pois a bota do guarda me empurra de volta para o fundo do poço, e em vez de fruto, cai uma pá e um grunhido que diz cave de volta o seu túnel e comece de novo.
André Ricardo Aguiar
2 comentários:
Meu caro: Enquanto os domingos não vêm, está chovendo um texto seu no Balaio de hoje. Um abraço.
E as fábulas a fazer bem o seu caminho :)
Blz, André?
Abs!
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