segunda-feira, novembro 06, 2006

Chuvas

São tão belas as chuvas que descobri como formá-las. As nuvens são como essas roupas consentidas pelos fantasmas que se desassombram da gente. Acenam do varal. Ninguém pode contar-lhes as mais variadas viagens da forma. Tudo por culpa do vento, primo das chuvas. Algumas pressentidas como o melhor segredo depois do sermão do avô ou antes do fim da meninice.
Sabe-se lá onde nascem seus sítios de água. Cada gota segue uma direção, como um pensamento que se entrega à dispersão geral das coisas: pensamento, gota, lembrança, outra gota, respingos que parecem se dirigir para a eternidade. A chuva, as chuvas. Todo plural regando a palavra. As águas, como são conhecidas, no piquenique líquido de repiques e remorsos, selva de minúsculos códigos morses que, entre a sintaxe da ventaria e a melancólica posição de buda de certos moluscos, fazem dos frades de pedra pontos de encontro do musgo.
Os relógios, em dias de chuva, são mais cabisbaixos, seguem rentes ao chão das horas; as cacimbas sofrem de bulício, as cisternas engravidam. O mato cresce, maduro, ciente de ser a onda verde, o mar triste dos bovinos.
Hoje, se me perguntam sobre chuvas, mesmo entretecido de uma goteira de prédio cinzento na cidade grande, digo que sou formado em chuvas do interior. Das antigas.

André Ricardo Aguiar

2 comentários:

Anônimo disse...

oi, fazia tempo que eu não aparecia pçor aqui (coisas da vida...). Gostei do que vi. De verdade verdadeira. Um aabraço.

Ricardo Mainieri disse...

André :

Tua prosa eivada de poesia vai molhando, inundando a tela em nuances & metáforas aquosas.
Texto suave de ler, com o dom do contador de estórias.

Abraço.

Ricardo Mainieri

http://www.mainieri.blogspot.com