sexta-feira, setembro 10, 2010

Lugar comum I

Pare de botar minhoca na cabeça de sua irmã – dizia a mãe ao menino, que nem ligava e prosseguia, fascinado com as tranças vivas que produzia.

Rosa Amanda Strausz

sábado, abril 28, 2007

Dentro do olho, o diamante

O cadáver foi encontrado no padrão comum dos crimes bárbaros: degolado. O motivo do crime está guardado comigo. A polícia fez busca e vistoria, mas deixou intacto o copo d’agua onde divido o aluguel com o par de dentaduras.


André Ricardo Aguiar

segunda-feira, março 05, 2007

O feitiço se volta contra o feiticeiro*
















* Stephan Loyd, contista afamado, ganhador do Book Prize de 2003, criador da extensa e falsa biografia de si mesmo, por sofrer ultimamente de súbitas quedas de memória, embora não me venha à cabeça o nome verdadeiro da enfermidade, contratou um ghost writer para continuar escrevendo a série de histórias policiais de estilo noir passado em Guiné Bissau, onde se misturam tramas tribais e rituais de magia negra. O ghost writer, no entanto, segundo informou a assessoria de comunicação da editora que publica os livros de Stephan Loyd, também tomou sumiço, deixando, lamentavelmente, um conjunto de páginas em branco e alguns títulos do que viria a ser a nova leva de histórias policiais do aclamado escritor. Fica, portanto, a título de desculpas, esta importante série recém-inaugurada da coleção Histórias policiais em títulos, pelo alto apelo comercial que o nome de Stephan Loyd (que leva a crer que o sumiço é uma possível jogada de marketing) tem entre seus fiéis leitores. O ghost writer e a namorada do escritor também estão sumidos e o fato da polícia ter sido acionada em nada justificaria a omissão desta inovadora série. N.E.

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

A fada mostra os dentes

Dentro do saco que a fada carregava às costas havia um par de olhos verdes, dois pacotes de goiabada, sapatinhos de cristal mais um par de chinelos velhos, uma declaração de amor eterno trazendo no verso uma carta de rompimento sereno, uma garrafa de água gelada, três doses de cachaça, uma passagem de avião para Rondônia, um diploma de alfabetização, um marido de estimação, um dicionário de rimas e uma muda de jequitibá.
Quando as artérias de Quitéria explodiram, quatro filhotes de rouxinol saíram lá de dentro.
Rapidamente, a fada aproximou-se, recolheu os pássaros e deixou uma moedinha em seu lugar.
Nem todas as fadas recolhem dentes.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Ninguém move Suely

Suely vivia fechada numa casa de várias portas e poucos parentes. Desde pequena era birrenta, malcriada, estranha. Colecionava porta-retratos vazios, canetas cegas e vestidinhos de infância. Não tinha namorado, embora acorressem aquela casa vários pretendentes das ruas circunvizinhas. Era bela ao seu modo, um tipo de beleza que assustava. Conseguiu chegar a tia, a uma idade que cuidava ser ultrapassada. Esperava rugas, que não vieram. A menopausa atrasada. Amava palavras cruzadas, mas detestava os sobrinhos. Por último, só aturava os outros parentes e tinha crises histéricas. Os talheres voaram, móveis foram movidos, a tv espatifou.

Suely não se achava paranormal. Ou talvez um pouco: mas estava na ordem tão prática dos seus dias, que aqueles fenômenos sabiam mais a variações de humor. Vivia trancada em casa, não tinha veleidades de buscar mudanças de rotina numa cidade do interior. Poucos a conheciam de rosto, muitos de nome. E aumentavam seus feitos. Responsável pela queda do obelisco na noite de natal. Rachaduras na Prefeitura. Prejuízo para os donos de bicicletas, com os aros retorcidos. A boataria incomodava a família, mas a vida seguia o seu curso.

Não havia muito que fazer. Em cidade do interior, escolhem a lenda, deixam os fatos de fora. A velha casa e a família há muito formam uma imagem de janelas mortas, jardins crestados, ferrugem no portão. Suely, de um momento para outro, rangia seus ossos e arrastava (agora com esforço e com as mãos) uma cadeira de balanço para o quintal, para tomar um gole de sol. Volta e meia, em algum ano memorável, balança o lustre, curvam-se velhos álbuns, uma vassoura varre o assoalho. Suely nem se dá conta, de pálpebras cerradas num cochilo, do ciúme dos fantasmas que foram relegados em segundo plano.

André Ricardo Aguiar

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Um gato chamado Mussorgski

Chove lá fora.
Mas só os olhos do pintor vertem água.


Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Favela Futebol Clube

Toca aqui, dribla acolá, esses moleques descem o morro. A origem da pelada ninguém sabe: a bola, meio remendada às pressas. Alguns PMs na contramão, mas os meninos não se fazem de rogados. Anjos sem chuteiras, a bola ainda chega a bater num policial. O fardado ri, uma mão no 38, outra num meneio que devolve a bola. O jogo desce o morro, a bola evita uma vidraça, e nesse bem bolado sistema, chegam a um mirante. Do outro lado o morro é fendido por uma grota e só um ronaldinho bem bombado daria um chute, um pé de canhão para alcançar a laje de uma casa onde espera o outro time. A movimentação na pequena área, um deles marca bem a posição, finta e dribla, põe a mira no gatilho dos olhos, toma espaço e solta a canela: a bola descreve um arco – a tensão é de um pênalti – e um que estica os braços e recebe o bolaço no peito. Os dois lados comemoram com tiros. Estamos quites, parecem dizer – a bola é rasgada e do seu ventre saem saquinhos do mais puro pó – o jogo empatado, uma bela partida, 1 x 1.

André Ricardo Aguiar