segunda-feira, julho 31, 2006

K

Passou por longos períodos em dormências, roçar de caibros, sustos rápidos com a luz. Seu estado de barata, sua estranheza quando se descobria pelos rodapés, seu manejo inocente, despreparado: as antenas tricotavam apenas o instinto de viver. Em algum ponto estava o asco, apenas como redoma, sem se dar na vista.

Caminhou longa dinastia da cozinha para as frestas do banheiro. Um dia, quem sabe no apocalipse, chegaria ao quarto. Desinfetar-se-ia da sua vida ortóptera e onívora, andaria em patinhas rumo a um mundo de formas duvidosas, corroborando sua alucinação de inseto. E subiria entre panos, se alojaria no morno do quarto, deixaria o suor noturno da noite como crisálida - e pesado, remexendo com desconforto esses braços lassos, as pernas em forma de K, a cabeça a tomar rajadas de luz pela janela, sons decodificados, família coagulada numa distante sala de jantar...

Quem sabe numa manhã não acordaria como o caixeiro-viajante Gregor Samsa?


André Ricardo Aguiar

quinta-feira, julho 27, 2006

Como dobrar 1.000 cisnes


O primeiro livro de origami foi publicado em 1797 e ensinava a dobrar mil cisnes encadeados. Na época, acreditava-se que se uma pessoa dobrasse mil cisnes teria um pedido atendido.
Antero, o ascensorista, desconhecia a informação e jamais tinha visto um exemplar do Hiden Senbazuru Orikata. Aproveitava o tempo passado entre um andar e outro para escrever poemas e treinar a letra. Ruins os poemas, linda letra, ele bem sabia. Ao terminar de escrever cada um, aproveitava uma parada do elevador e jogava a folha na lata de lixo sem nem se dar ao trabalho de amassar o papel.
Maria Imaculada, a moça da limpeza, adorava os papéis quase transparentes desenhados com a letra barroca de Antero. Costumava utilizá-los para envolver os ovos que sua galinha botava antes de devolvê-los ao ninho. Como era analfabeta, não lia os poemas. Nem por isso, deixava de recolher cada lâmina. A Ode ao cisne morto foi usada como invólucro para o 997º ovo. Soneto do vôo impossível embrulhou o 998º . Coragem, o 999º.
No dia em que nasceu o milésimo pinto, Antero conseguiu enfim escrever um bom poema e Maria Imaculada já tinha juntado dinheiro suficiente para comprar sua casa. Nenhuma surpresa, já que tanto um como outro tinha trabalhado duro. Neste dia, não teve papel bonito na lixeira nem ovo embrulhado.
Na barriga da madrugada, sem que ninguém observasse, lindo mesmo foi ver o pinto romper a casca do ovo com bicadas decididas e uma altivez surpreendente. Sem folha de proteção, sem caligrafia enfeitada, sem empecilhos. Só uma vontade atávica de empinar o peito e ir em frente – mesmo sem ter muita certeza de que algum dia poderia voar.

Quem quiser começar a dobrar seus mil cisnes, pode consultar a edição fac-similada do Hiden Senbazuru Orikata que se encontra em:
http://origami.gr.jp/Model/Senbazuru/index-e.html
A ilustração acima foi retirada de lá.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, julho 24, 2006

Casa de bonecas

Hermes tenta não contar para ninguém. Mas na sua casa tem uma casa de bonecas no porão. Que devia ser da bisavó, acha. Entre quinquilharias, lá está. É idêntica a uma casa em estilo vitoriano, o teto é uma tampa que se suspende, dá para espiar o interior e ver com orgulho o trabalho artesanal: as divisórias, os móveis liliputianos do quarto, um corredor, outro quarto, uma escadaria que leva ao térreo. Um mimo. Dá para olhar, agachado, todas as janelas, ver como o carpinteiro trabalhou as esquadrias, aqui e ali uns encaixes na parede imitando um quadro, totalmente kitsch. Enfim, entre teias de aranha, caixotes e crise de asma, uma vez ou outra ele vai lá espiar. Só que descobriu que não estava só.

Numa noite, pouco antes de ir dormir, antes de cerrar a porta do porão. Desceu novamente a escadaria e agachou-se defronte à casa de bonecas. Havia uma diminuta luz vagamente iluminando o quarto: era o abajur de plástico. Seguindo o rastro da luz, que lambia a cama de papelão, via-se os contornos de uma minúscula mulher (de plástico?) levemente ressonando. No banheiro, som de água, pia aberta, barulho de barbeador. Hermes, incrédulo, baixou a tampa do teto, esfregou os olhos. Guardar segredo. Não contar para ninguém. Uma casa de bonecas no porão, herança da bisavó. Mas achou que era demais, um sonho mau e cínico. Resolveu dar um tempo, parar com os comprimidos. Fruto de uma coleção de insônias. Hermes voltou à faculdade, para as aulas de lógica.

Uma semana depois, desceu ao porão. Parecia mais fundo, ele mesmo uma caixa de sapatos guardando a memória familiar. Ou onírica. Lá estava, meio azulada, a casa de bonecas. Um brinquedo inocente. Até certo ponto, não fosse o homenzinho encarrapitado no teto, fazendo reparos. Como se algum leviano tivesse batido com força. Parecia irritado. Depois desceu por uma escadinha e sumiu pelo flanco da casa. Hermes não chegou mais perto nesse dia. Por garantia, passou a chave na porta.

No dia seguinte, munido de lupa, a respiração contida. E por uma abertura – já não arriscava a dizer janela – olhou para o casal, o boneco virado para o fogo da lareira, um jornal aberto na cara, e a boneca tricotando um casaco. Parecia irritada. Parecia falar, sem meias palavras, sem conter o fôlego, o mover de lábios, dizendo palavras duras. Que o mundo não era brincadeira. E que existia sim, dentro da normalidade, a brecha. E dentro da brecha, a mão gigantesca – como um terrível deus – de um destino vigilante, que um dia (e disse isso para o marido, tricotando mais rápido, iracunda) ia se meter onde não era chamada.


André Ricardo Aguiar

quinta-feira, julho 20, 2006

Basta um segundo

Estava ali, escondida atrás da orelha do gato, tinha certeza. Mas agora, havia sumido. Uma porção de gente rodeava o bicho atropelado, já quase morto. Todos a olhavam interrogativos, quase hostis. Se não era veterinária e nem dona do animal, por que abrira caminho às cotoveladas e se agachara ali?
Alice ergueu-se, meio acuada. Pediu desculpas e afastou-se. Mas não muito. Continuou olhando a cena de longe. Assim que o gato estremeceu pela última vez, as pessoas começaram a ir embora. E ela voltou. Sabia que estava ali. Ajoelhou-se, esquadrinhou com a ponta dos dedos o pêlo já frio e puxou a idéia prontinha:
“Basta um segundo.”
Apertou o passo, disfarçou o nervosismo e prosseguiu seu passeio. Poucas quadras adiante, um rapaz oferecia um bombom a uma moça sorridente. Mais uma vez Alice se apressou. Sabia que existia uma frase flutuando entre a boca da moça e o chocolate.
Precisava pegá-la antes que os dentes a rasgassem.

Rosa Amanda Strausz

segunda-feira, julho 17, 2006

A pescaria

Como poucos, cultivava a solidão. Quando, findo o trabalho na fábrica, rumava ao ponto de ônibus. Ou mesmo seguindo as anáguas da lua. Exausto, ancorava o dia e ligava a tv.

Uma noite encontrou o Pescador sentado na beira do sofá. Vara de pesca em punho, jogava a linha no fundo da sala e, intruso, esperava. Ficou sem saber o que dizer. Não conseguiria removê-lo do sofá. Com o passar dos dias, acabou aceitando a convivência. Mas evitava-o. Pôs a tv no quarto, em respeito ao silêncio do Pescador. E lia Hemingway na cozinha.

Era difícil suportar aquele código de espera, a economia de movimentos, o respirar matemático do sujeito. Além disso, aqui e acolá, surpreendia a linha costurada à sombra dos móveis, a tecer emboscadas. De uma feita, tomou do anzol sua meia de lã. Outro instante, feriu o tornozelo ao sair do banheiro. O Pescador apenas desenrolava ou enrolava o molinete, trepado no sofá, como se fosse um barco imóvel. Perscrutando os cômodos da casa.

Um dia o homem trouxe uns bolinhos de bacalhau.
Cuidando não se enredar na linha espalhada ali, foi desembrulhando a gula. Na cozinha, longe do olhar alheio, mordeu o primeiro pedaço. Mas quando sentiu um forte repuxo, debateu-se, o gosto metálico do anzol no céu da boca.

Em vão. Fisgado até a sala, arrastado pelo chão, foi pego com mãos fortes e rudes pelo Pescador, que o colocou no cesto, pôs fim à pescaria e sumiu.


André Ricardo Aguiar
Ilustr. A. Jasinski

quinta-feira, julho 13, 2006

Caleidoscópio em fragmentos ímpares


São precisos três frangos para preparar um caldo forte e apurado, que garanta a cura de qualquer indisposição. Mais uma panela robusta, uma paciência de santo, uma receita de família e um sentimento de compaixão seletivo – que inclua o doente e exclua os frangos.

São precisas três maçãs para dar cabo de apenas uma Branca de Neve. A primeira, ela morde e vai para o lixo porque maçã com marca de dentes não fotografa bem. As duas outras pousam na face da princesa e lhe dão o colorido necessário para que nossas fantasias mais queridas não desbotem no filme.

São precisos três charutos para chamar Exu na encruzilhada. Três fios de cabelo para tirar o marido indesejado de casa em três dias. Três Marias para que o céu não chova no dia do passeio. Três pérolas para fazer um par de brincos que conquiste para sempre a namorada.

Há quem discorde das receitas assimétricas. Eva nem lhes dá ouvidos. Só Deus cria pares perfeitos: pernas, casais, goiabada com queijo, gêmeos univitelinos. Nós, os semoventes, encontramos nas arestas consolação e atrevimento.

Rosa Amanda Strausz
Foto de C.Acosta

segunda-feira, julho 10, 2006

Casa na árvore

Em casa de Florinda, uma porta pensa que é árvore.
A madeira estala algum lamento, ainda que os moradores a usem para entrar ou sair da casa. Depois, quando a azáfama esmorece, quando os afazeres respiram, a porta pousa quieta em seus encaixes. Imóvel, a seiva volta a circular, o ciclo puxa de suas entranhas pequenas raízes, uma folhinha cobre o olho mágico. Mal descobrem o erro – nunca deixar de usar a porta – correm para abri-la. Sem sucesso desta vez. Cansada do entra-e-sai, cuidou de enfiar suas raízes até as fundações da casa. Tranqüila, do outro lado a maçaneta estende-se em forma de galho, à espera de um ninho.

André Ricardo Aguiar